O COICE DO ASNO
março 05, 2025Prof. Dr. Joceval Bitrencourt
O COICE DO ASNO
“É, portanto, justo devolver o mal com o mal, como acredita a maioria, ou injusto? ... jamais é correto cometer injustiça ou revidar a injustiça com a injustiça, ou quando formos vítimas do mal, nos defendermos revidando com o mal” (PLATÃO, Críton, 49 c-e).
“A tolice e a insensatez não se curam com conselhos” (Montaigne)
Um amigo - vou identificá-lo como
Diógenes -, com formação em filosofia,
narrou-me algo ocorrido com ele que o teria deixado muito triste. Sempre
gostei de ouvir suas histórias. Ele é o que poderíamos chamar de um bom
contador de casos. É verdade que, às vezes, mente um pouco, mas, acho eu, esse
é só um recurso literário do qual ele faz uso visando tornar as suas narrativas
mais interessantes, talvez até um pouco mais teatrais.
Diógenes participava de uma
entidade dedicada à confecção de documentos, resoluções, coisas do gênero. Certo
dia, em uma reunião formal da entidade, foi apresentado um documento que,
depois de lido, seria submetido à votação da plenária. Lido o documento, foi
aprovado por unanimidade. Ele, apesar de ter votado favorável à aprovação do
documento, indicou algumas críticas à forma como o tal documento fora
elaborado. Diante de sua crítica, achou-se por bem que o documento voltasse em
uma próxima sessão para ser reavaliado. A situação criou um certo desconforto,
principalmente entre aqueles que desejavam sua aprovação imediata.
Na reunião seguinte, o documento
voltou à pauta. Durante a sessão, o jovem relator o reapresentou, precedendo a
leitura com algumas observações. Uma delas deixou meu amigo muito triste. Disse
o relator: - Hoje, antes de vir a esta sessão, recebi a seguinte recomendação: “Não
leve em conta as provocações de Diógenes!”
Diógenes sentiu o impacto da
declaração. Embora perplexo, esforçou-se para não demonstrar o seu desconforto
aos presentes. Teve vontade de descobrir quem havia aconselhado o relator a
lançar contra ele uma flecha tão venenosa, mas, para evitar mal-estar na
reunião, optou pelo silêncio. Para ele, as palavras soaram como se estivessem
dizendo: “não ligue para o que ele diz, ignore-o. Apesar de suas discordâncias,
ninguém o levará a sério. No final, todas as mãos estarão levantadas a nosso
favor.”
Naquele momento, lembrou-se de
Diógenes - não o meu amigo, mas Diógenes, o grego, discípulo da escola Cínica,
que renunciou às coisas do mundo e escolheu a pobreza, fazendo sua morada em um
tonel. Conta a lenda que, certa vez, enquanto
filosofava em público, ninguém prestava atenção em suas palavras. Triste,
começou a assobiar. Para sua surpresa, a multidão aproximou-se, curiosa. Ele então
censurou a todos: “Vocês vêm ouvir uma tolice, mas ignoram as coisas sérias”.
Diógenes - agora sim, o meu amigo -
percebeu, naquele instante, que aquele não era mais o seu lugar. Não o ouviam.
Estava sendo apenas tolerado, mas não aceito. Era hora de partir, de levar sua
filosofia para outros ares. Ele sabia que, pelas costas, era alvo de chacotas.
Resignado, deu de ombros. Afinal, não
seria o primeiro, tampouco o último a sofrer zombarias. Sempre foi assim. Diz
Sócrates: “Aquele que se põe a filosofar torna-se motivo de escárnio.” Como
exemplo, cita o ocorrido com Tales que caiu em um poço enquanto observava os
astros. Uma camponesa zombou dele dizendo-lhe: “Você tenta conhecer o céu, mas
não enxerga o que está aos seus pés.”
Marx, que nem sempre teve os
filósofos em boa conta, não perde a oportunidade de fazer chacota com os
fabricadores de conceitos. Em uma carta, dirigida a Laura, sua filha, ele zomba
dos filósofos, indicando a inabilidade desses contempladores de estrelas para
com o mundo prático da vida: “[...] um barqueiro recebe um filósofo que deseja
fazer a travessia entre as margens do rio”. Começa o diálogo entre eles:
“Filósofo: barqueiro, você sabe História? Barqueiro: não! Filósofo: então
perdeu a metade de sua vida. Continua o
Filósofo: estudou matemática? Barqueiro: não. Então perdeu mais da metade de
sua vida. Essas palavras apenas haviam acabado de sair da boca do filósofo e o
vento virou o barco e ambos, barqueiro e filósofo, viram-se lançados à água.
Então, o barqueiro perguntou ao filósofo: você sabe nadar? O filósofo responde:
não. O barqueiro conclui: então você perdeu a vida inteira”. E por aí vai,
sempre alguém a zombar dos filósofos...
Assim, ouvindo o meu amigo,
compartilhei de sua tristeza. Não gostaria de estar em seu lugar. A história, contada
em um bar após a terceira saideira, não me abandonou, sempre voltava a
incomodar-me. Uma tarde, enquanto tomava um whisky, o assunto voltou a me
visitar. Sem nada para fazer naquele momento, deixei-me levar pelo desconforto
do acontecido. Que tempos vivemos, em que não há mais espaço para filósofos? Pensar
tornou-se um ato subversivo, desprezado pelos “homens de bem”. Ignora-se, sem
pudor, o conselho de Descartes: “Os brutos animais que apenas possuem o corpo
para conservar ocupam-se continuamente na procura de alimentos; mas os homens,
cuja a parte principal é o espírito, deveriam empregar os seus principais
cuidados na procura da sabedoria, que é o seu verdadeiro alimento” (Carta
prefácio).
Lembrei-me, do acontecido com
Sócrates. Certa vez, Sócrates encontrava-se no mercado, na cidade de Atenas, na
companhia de alguns discípulos, filosofando, prática que se dedicava com muito
prazer. Falava da “importância da democracia”, “que ser um ‘bom’ cidadão é
fazer um bom uso da razão em benefício da cidade”, “que, entre todos os
pecados, a ignorância, é o pior deles” “de como é fundamental, para a saúde do
bem público, que o governante seja capaz de ouvir o povo antes de elaborar as
leis da cidade...”. Bem, falava isso e outras coisas mais... Era um moralista.
Um devoto das leis. Diante da possibilidade de transgredir às leis de Atenas, e
salvar-se, escolheu tomar o cálice da morte.
Enquanto falava essas coisas, além dos seus discípulos, que estavam
sempre por perto, outras pessoas foram se aproximando, inclusive alguns que
participavam da coisa pública, queriam saber sobre o que tagarelava aquele
“feio” filósofo... Não demorou muito, o que Sócrates falava começou a causar um
certo desconforto em alguns dos presentes. Logo se ouviu, de um: “não ouçam
este homem, nós sabemos o que é melhor para a cidade, não ele”, de outro canto,
um outro falou: “Não tens visto, por onde ele anda, é motivo de chacotas!!!”,
mais um: “deveria procurar um emprego, ao invés de ficar perambulando pelas
ruas, lançando injuria contra a cidade e os deuses que adoramos”; “ele é
perigoso, vive corrompendo os nossos jovens...”. Não demorou muito, as agressões, já não mais
com palavras, tornaram-se físicas. Um, mais exaltado, se aproximou e deu um
tapa na cabeça de Sócrates, um outro chegou e o empurrou, quase levando-o ao
chão, logo, um mais ensandecido, desprovido de qualquer pudor, deu-lhe um chute
no traseiro... Seus discípulos, vendo a violência aumentar, foram ao seu
socorro, tirando-o daquele perigoso lugar. Já à salvo, Sócrates ouvi a
recomendação dos seus discípulos que se encontravam revoltados com as agressões
sofridas por seu mestre: - “Sócrates,
não é justo você sofrer essas agressões. Você não as merece. Você tem que levar
esses agressores ao tribunal, eles devem ser punidos pelo crime que acabaram de
cometer contra você”. Em silêncio, Sócrates ouvia os seus discípulos. Depois de
ouvi-los, ele disse: “Caros amigos, respondam-me: “se eu recebesse coices de um
asno, levá-lo-ia por acaso aos tribunais?” Discípulos: - “Não, claro que não”.
Sócrates: - “então amigos, estamos tratando do mesmo caso.”
Assim, ao recordar o ocorrido com
Sócrates, minha tristeza com as dores do meu amigo Diógenes, deu lugar à
compaixão pelo conselheiro do relator que o orientou a não levar em conta o que
diz o filósofo. Nada poderia ser feito.
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