SEXO, MORTE E LENDA
março 17, 2025Prof. Dr. Joceval Bitrencourt
Segundo
Freud, os sonhos são uma expressão de nossa sexualidade. Nessa noite, tudo
remetia a Freud: o mundo estava dividido em dois territórios, o da morte e o da
sexualidade. Sem que combinassem comigo, tornei-me vítima desses dois impulsos.
A noite começava – lá pelas zero horas – e, ao adormecer, iniciou-se o meu
sofrimento. Nem o sono havia se instalado em mim quando, de repente, me vi
matando um homem.
Não
me pergunte o motivo; simplesmente, matei-o. Resta-me apenas uma lembrança
difusa: ao meu lado, uma amiga sussurrava: 'Mate-o.' Obedeci. E matei-o. Por
quê? Não sei. Foi um ato gratuito – como tantos outros que cometemos quando a
razão, essa renitente sentinela, se rende por um instante ao cansaço."
Entretanto,
não posso negar que, mesmo sem ter uma causa pessoal ou um desafeto com a
vítima, fui tomado por um sentimento de prazer ao conduzi-lo ao êxito letal.
O
que me proporcionava prazer não era tanto o ato de tirar uma vida, mas o fato
de não haver motivo algum para fazê-lo – uma morte gratuita, sem causa ou
finalidade, que silenciava um corpo para sempre. Matá-lo sem razão fazia-me
sentir alegre, num vazio, sem ser tocado por qualquer sentimento de culpa.
Nem
sequer questionei minha amiga sobre o motivo de matar aquele desconhecido.
Matar alguém conhecido – que feriu nossa alma – é diferente; agora, tirar a
vida de um ser invisível, sem qualquer representação em nossas vivências, era
simplesmente matar por matar. E foi exatamente isso que fiz.
Em
um ato puramente mecânico, retirei a arma da cintura, apontei-a para o desafeto
– não sei de quem, não meu – e executei: dois tiros certeiros. Um corpo caiu,
silencioso, sem nome ou alma, sem vida. Saber que tive o poder de tirar aquilo
que Deus concedeu – a vida – me encheu de um prazer perturbador, como se eu
dissesse: “Você tem o poder de dar, e eu o de tirar.” Em certa medida, nossos
poderes se equivaliam.
Não
demorou para eu saber que o assassino daquele desconhecido já estava preso. Que
bom – assim não seria incomodado. Contudo, uma injustiça se impunha: um homem
inocente cumpria a pena que deveria ser minha.
Cheguei
até a agradecer a Deus, sentindo que Ele cuidava de mim e me protegia. Quem
sabe, sem que eu soubesse, o grande julgador do universo estivesse fazendo a
coisa certa – afinal, li no Livro de Jó que nada acontece por acaso e que tudo
está sob os cuidados de Deus. Quem sabe se, naquela ação além da compreensão
humana, eu não estivesse, sem perceber, cumprindo uma missão divina.
Não
sabia em que hora da noite me encontrava, mas meu corpo sentia a eternidade de
cada momento. As noites de pesadelo são sempre longas, pois o sono é
superficial – ficamos entre a vigília e o adormecer, à espera da chegada da luz
do sol ao nosso dia.
Não
me lembro de quantos anos se passaram, mas por mais de cinco, esse homem
permaneceu preso em meu lugar. Permaneci em silêncio, como se coubesse a Deus
fazer justiça – e, de fato, Ele o fez. Quem sou eu para reclamar?
A
mandante do crime, tão criminosa quanto eu, também se calou. Entre nós,
formou-se um pacto: um cuidava do crime do outro, e simulávamos que jamais nos
lembrávamos do ocorrido. Porém, como se sabe, nenhuma mentira ou transgressão
permanece oculta para sempre. Em pouco tempo, o fio do novelo se desgarrou,
revelando toda a trama. Minha cumplice informou-me que começavam a suspeitar
que o criminoso preso era inocente, enquanto o verdadeiro culpado continuava
livre – o olhar da lei se voltava para mim.
Estranho:
sentia-me aliviado, pois parecia que eu não estava encarcerado fisicamente, mas
a minha culpa me aprisionava internamente. Encontrava-me preso, sem saber.
A
única forma de me libertar seria ser preso, pagar pelo meu crime e cumprir a
sentença. Na cela, meu corpo estaria preso, mas minha alma se veria livre da
culpa. Não me sentia culpado por ter matado aquele homem – como já disse, senti
prazer. O que me corroía era saber que um homem inocente cumpria a pena que
deveria ser minha.
Lembro-me:
um dia roubei um livro – o roubo me deu prazer; em outra ocasião, matei um
homem – o crime me proporcionou prazer.
Quando
o dia quase amanhecia, minha cumplice aproximou-se e me aconselhou a me
entregar. Todos já sabiam que eu era o verdadeiro criminoso, enquanto o
inocente estava preso em meu lugar. A lei batia à minha porta. Segundo ela, eu
deveria assumir o crime, sem arrastá-la para o delito, e, em troca, ela
providenciaria, por meio de advogados – inclusive seu marido – uma redução da
minha pena. Sabia, porém, que ela não cumpriria sua palavra, pois sua única
preocupação era se livrar daquele infortúnio.
Mesmo
assim, a decisão foi minha: fui eu quem puxou o gatilho. A responsabilidade era
exclusivamente minha – eu era o assassino. Sem me importar com as palavras dela
e ciente de que estava sozinho, decidi me entregar. Dirigi-me ao centro da
cidade e fui até o prédio onde se encontrava o homem da lei. Peguei o elevador
e subi até o quinto andar. Após um longo corredor, ladeado por diversas portas,
deparei-me com uma que exibia uma placa: “Dr. Juiz”.
Entrei
e encontrei uma sala com uma mesa em um canto, uma poltrona de três lugares
encostada na parede e um ambiente nebuloso, com meia-luz. Sentada à mesa, uma
secretária, com o aspecto de funcionária de cartório, atendeu-me. Dirigi-me a
ela e disse: “Preciso falar com o Dr. Juiz...”
—
“Por favor, aguarde, ele encontra-se em atendimento”, respondeu.
Sentei-me
e, em menos de trinta minutos, ela, olhando em minha direção, anunciou:
“Senhor, pode entrar, o Dr. Juiz o aguarda.”
Calmo,
com a convicção de estar cumprindo um dever moral, fui conduzido à sala do Dr.
Juiz.
Ao
amanhecer, já acondicionado, observei cada canto do meu novo mundo, como se
estivesse conhecendo os limites de minha cela. Acordei, preparei o café, abri o
Facebook e, na primeira postagem, deparei-me com a foto de minha cumplice.
Fiquei confuso – será que meus sentidos me traíam? Qual dos dois mundos era o
verdadeiro? Não seriam ambos igualmente reais?
Seja
no sonho ou na vigília, estamos regidos por duas pulsões fundamentais: a morte
e o sexo.
“[...]
Devo aqui considerar que sou um homem e, por conseguinte, tenho o costume de
dormir e de representar, em meus sonhos, as mesmas coisas – ou, por vezes, algo
menos verossímeis – que esses insensatos momentos de vigília. Quantas vezes
sonhei, durante a noite, que estava naquele lugar, que estava vestido, que
estava junto ao fogo, embora, na realidade, eu estivesse completamente nu em
meu leito?
Parece-me
agora que não é com olhos adormecidos que contemplo esse papel; que esta cabeça
que movimento não está dormente; que é com desígnio e propósito deliberado que
estendo esta mão e a sinto. O que ocorre no sono não se apresenta com a mesma
clareza ou distinção. Contudo, ao refletir cuidadosamente, lembro-me de ter
sido inúmeras vezes enganado por ilusões semelhantes enquanto dormia. E, ao
ponderar, vejo tão claramente que não há indícios conclusivos ou marcas certas
para distinguir nitidamente a vigília do sono, que me sinto completamente pasmo
– um pasmo quase capaz de me persuadir de que estou sonhando.” (Descartes – Meditações)
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