FALTAS - MÚSICA/FUTEBOL
fevereiro 08, 2025Prof. Dr. Joceval Bitrencourt
FALTAS
MÚSICA/FUTEBOL
Só os loucos andam por aqui
Em
um domingo qualquer, sem nada para fazer e sem disposição para atividades
físicas ou intelectuais, começo a zapear a tv em busca de algo no qual pudesse
gastar meu ócio irresponsável. De repente, deparo-me com uma reportagem sobre dois
jogadores que marcaram época no passado: Raí e Palhinha. Segundo a matéria,
tratava-se de uma dupla espetacular. Sem interesse pelo assunto, mudei de
canal.
Antes dessa reportagem, foi ao ar outra sobre um jogo
da Seleção Brasileira. Apesar do emocionante apelo de Pelé - “Pelo amor de
Deus, o Brasil não pode esquecer das criancinhas” -, não conquistou minha
atenção. Irrito-me com minha própria falta de interesse. Pergunto-me: por que o
futebol não desperta nenhuma paixão em mim?
Não tenho uma resposta que se sustente. Simplesmente
não consigo entregar minha alma a esse esporte. Sou indiferente aos seus
afetos: não me são nem positivos nem negativos, não alegram nem entristecem
minha alma. Não nutro por esse esporte nenhuma espécie de admiração. Se não o
admiro, resta-me ser-lhe indiferente.
Curiosamente,
acabei adotando uma regra: como não torço por nenhum time em particular, acabo
torcendo pelo sucesso do time mais fraco, mesmo que jogando contra a Seleção
Brasileira. Tenho muitos irmãos, quase todos apaixonados por futebol. Vejo a
direção para onde vão seus afetos e vou na direção contrária. Eles torcem pelo
Vitória, eu finjo que sou Bahia. E o pior: eles acreditam.
Ao
refletir sobre outro prazer da alma, a música, percebo que também não nutro uma
paixão especial por ela. Meu Deus, como se não bastasse a indiferença pelo
esporte, esta pobre alma também não se deixou encantar pela música! Gosto de
música, mas sem entusiasmo ou grandes conhecimentos. Para essa ausência de
fervor, há uma justificativa - embora eu saiba que, diante de uma falta tão
grave, nenhuma explicação me livraria da punição severa dos deuses da música.
Conheço pessoas que conseguem se concentrar em suas
atividades profissionais mesmo cercadas de barulho. Tenho amigos que trabalham
enquanto ouvem música.
Lembro-me
de uma vez, ainda no mosteiro de São Bento, em Salvador, estava sendo filmados
cenas do filme, se não me engano, Terra em Transe, de Glauber Rocha.
Enquanto observava as gravações, algo chamou
minha atenção. A atriz, provavelmente Norma Bengell, sozinha em um
canto, memorizava o seu texto. O que mais me impressionou foi que, enquanto
estudava, ouvia música em alto volume. Segundo ela, a música ajudava na memorização.
Era quase uma técnica para auxiliá-la no seu ofício. Assim como ela, conheci muitos,
que não renunciam à música como companheira de trabalho. Que inveja! Este,
definitivamente, não é o meu caso.
No
correr do tempo, as circunstâncias da vida me direcionaram para os estudos em
filosofia. Fui conquistado por Atena, a deusa da sabedoria. Como veremos em
breve, tornei-me um estudante de filosofia, o que mais tarde viria a ser minha
profissão. Desde então, tenho dedicado meus dias ao estudo e à docência. Vivi
grande parte da minha vida entre as bibliotecas. Neste espaço sagrado dedicado
aos livros, reina uma regra simples e universal: o silêncio.
Estudar
é um ato solitário. Eu poderia ter aproveitado essa solidão para conciliar os
estudos com a música. Bastaria recorrer a um fone de ouvido e, assim, mesmo em
uma biblioteca, conseguiria estudar enquanto ouvia música, sem incomodar
ninguém. No entanto, fracassei todas as vezes que tentei adotar esse recurso.
Não consigo me concentrar com nenhum ruído. Ou escuto música, ou estudo - fazer
ambos ao mesmo tempo é impossível. Quando precisei sacrificar uma das opções,
foi a música que perdeu sua primazia em minha alma.
Não
tenho dúvida de que essa escolha lançou sombras sobre o meu espírito. Ela não
me tornou um homem melhor. Sem a música, tenho certeza de que meu mundo se
tornou um pouco mais descolorido. Shakespeare, em O Mercador de Veneza,
diz: “Todo homem que
em si não traga música. E a quem não toquem doces sons concordes, é de
traições, pilhagens, armadilhas. Seu espírito vive em noite obscura, Seus
afetos são negros como o Érebo: Não se confie em homem tal.” Sócrates, homem de espírito aberto a todas as
artes, e não apenas à filosofia, enquanto aguardava o cálice da morte,
aproveitou seus últimos minutos de vida para estudar uma ária para flauta. Um
discípulo, observando a cena, perguntou: - Sócrates, eis que o carrasco já
prepara o teu veneno. Vais morrer em poucos minutos e ainda assim te dedicas a tocar
uma flauta? Na calma de quem enfrenta a morte como quem a desafia e vence, ele
respondeu: - Não importa. Sei que vou morrer agora. Mas, antes de morrer, quero
aprender a tocar essa melodia na flauta!” Nunca
é tarde para aprender. A aprendizagem só termina com a morte. Enquanto ela não
chega, o homem deve lutar – e, se possível, vencer – sua ignorância. Sócrates não temeu a morte; a filosofia o preparou para encontrá-la.
Como disse Platão em Fédon: "[...] os que se dedicam à filosofia
são homens que se estão preparando para morrer." Assim, na companhia da
música, o homem que ensinou ao Ocidente a arte de contemplar o sol despediu-se
do mundo das sombras.
Não há como não se entristecer ao perceber que, ao me
manter distante da música, impedi que ela visitasse e revelasse recantos
silenciosos e inesperados do meu espírito.
Sinto-me
ainda mais envergonhado, ampliando as dores da minha falta, quando leio Clarice
Lispector, em seu livro A Hora da Estrela, falar sobre como a música a
afetou e a revelou. “[...] Dedico-me à tempestade de Beethoven. À vibração das
cores neutras de Bach. A Chopin que me amolece os ossos. A Stravinsky que me
espantou e com quem voei em fogo. À “Morte e Transfiguração”, em que Richard
Strauss me revela um destino? Sobretudo dedico-me às vésperas de hoje e a hoje,
ao transparente véu de Debussy, a Marlos Nobre, a Prokofiev, a Carl Orff, a
Schönberg, aos dodecafônicos, aos gritos rascantes dos eletrônicos – a todos
esses que em mim atingiram zonas assustadoramente inesperadas, todos esses
profetas do presente e que a mim me vaticinaram a mim mesmo a ponto de eu neste
instante explodir em: eu.”
Infelizmente
a vida é perversa e, em certa circunstância, só nos permite escolher um amor. Fiz
minha escolha e carrego as dores — acompanhadas de suas consequências — por
tê-la feito. Sigamos, sem arrependimentos tardios.
“Se és sábio, melhor, se quiseres ser sábio,
deixa-te de fantasia e aplica as tuas forças a fim de atingires o quanto antes
a perfeição espiritual. Se algo te impede de avançar, liberta-te, corta o mal
pela raiz”. (Sêneca – Carta 17)
Ao longo da vida, até este momento, enquanto escrevo, sempre exigi silêncio absoluto. Adestrei meu espírito para conviver em harmonia com os gritos do meu próprio silêncio. Esses, sim, suporto; fazem parte do ofício. Os demais tornam-se um obstáculo aos meus movimentos na delirante arte de pensar e, quando possível, escrever. Se, para muitos, o silêncio é um incômodo, para mim é um prazeroso alento. Nele encontro-me; nele me salvo.
Agindo
assim, tornei-me um chato, quase obsessivo. Talvez seja por isso que não tenha
animais em casa: um latido ou um miado seriam o bastante para me interromper e
desviar dos meus objetivos.
“Creio que falei demais quando
me gabei de poder gozar uma tarde de silêncio e um retiro livre de
interrupções: agora mesmo me chega aos ouvidos um enorme clamor vindo do
estádio, o qual, se me não corta o pensamento, pelo menos o desvia...” (Sêneca
– Carta, 80).
Quando algo perturba o silêncio essencial ao meu
trabalho, perco o controle sobre mim mesmo. Consciente disso – e também do fato
de que maltratar animais é crime, conforme previsto na Lei de Crimes Ambientais
–, cerquei-me de todos os cuidados necessários para evitar qualquer situação
que pudesse me levar a passar o resto dos meus dias atrás das grades. Sou uma
pessoa reservada; falta-me vocação para grandes espetáculos públicos.
Escolher é decidir entre alternativas, mas também renunciar
a infinitas outras possibilidades.
Se
tivesse escolhido a música em vez da filosofia, teria sido mais feliz? Ovídio
advertiu: “Nunca se deve perder de vista o último dia do homem, nem declarar
que alguém é feliz antes de vê-lo morto e reduzido a cinzas.” Se eu tivesse
disciplinado meu espírito para conviver, ao mesmo tempo, com essas duas
demandas estéticas tão essenciais à alma, teria encontrado uma saída mais
harmoniosa e, portanto, mais acertada? Fiz a escolha certa? Jamais saberei.
“Quem escreverá a história do que poderia ter sido o
irreparável do meu passado; / Este é o cadáver. / Se a certa altura eu tivesse
me voltado para a esquerda, ao invés que para a direita; / Se em certo momento
eu tivesse dito não, ao invés de sim; / Se em certas conversas eu tivesse dito
as frases que só agora elaboro; / Seria outro hoje, e talvez o universo inteiro
seria insensivelmente levado a ser outro também” (F. Pessoa).
A vida, porém, se constrói em torno das escolhas que
fazemos. Muitas vezes, sacrificamos uma paixão para abraçar outra. O amor que
escolhemos pode ser ciumento, egoísta e incapaz de se deixar partilhar. Em
certas ocasiões, para que possamos nos dedicar inteiramente a esse amor, é
preciso fechar todas as portas e janelas, impedindo até mesmo que um único raio
de sol perturbe a harmonia dessa convivência.
Naquele momento, a filosofia me bastava. Nada deveria
se interpor em nossa relação. Seguindo os passos de Sêneca, dei-lhe mais que
prioridade, dei-lhe exclusividade. “Não é em horas esparsas que podemos dedicar-nos à filosofia: devemos
tudo negligenciar para entregar-nos a ela. Jamais lhe consagraremos tempo em
demasia. Abandoná-la um momento é abandoná-la completamente. Ela não fica a nos
esperar no ponto em que a deixamos. É-nos necessário resistir a qualquer outra
preocupação e, longe de nós ampliar nosso raio de atividade, afastar de nós o
que não é essencial. (Sêneca - Cartas a Lucílio)
No
meu caso, embora reconheça o peso de ter relegado a música a uma estante
distante do meu espírito, não me arrependo da escolha que fiz. O sacrifício foi
feito em nome da filosofia.
Ninguém
surge no mundo com as potências já inscritas na alma, como acreditava
Aristóteles. São as nossas experiências concretas, vividas no mundo real, que
vão configurando a nossa forma de ser e estar no mundo. Não escolhemos gostar de música porque possuímos uma
potência musical inata em nossa alma. Ao contrário, aprendemos a gostar de
música pelo hábito que vamos adquirindo com a convivência que temos com ela.
Os hábitos moldam a alma pela repetição de ações ou
pelo uso frequente de determinados produtos. De maneira sutil, passam a regular
nossas escolhas sem que nos demos conta. Transformam-se, por assim dizer, em
leis. Não os escolhemos; somos escolhidos por eles. Sua ausência gera uma
sensação de desconforto, um alerta de incompletude em nosso ser. Tornamo-nos um
ser em falta, incompletos, até que, ao reencontrarmos o que nos falta, possamos
finalmente sentir-nos reconciliados no gozo de nossa unidade identitária.
Logo, algo que, a princípio, não fazia parte de nossa
vida, pela repetição do uso, passa a ser essencial, de forma que já não nos
reconhecemos em sua ausência. Esses hábitos assumem uma identidade com a nossa
forma de ser e ver o mundo. Isso vale para a música que ouvimos, para a
regularidade com que nos dedicamos às nossas orações e, até mesmo, para o
sabonete ou o adoçante que usamos com regularidade.
Todos nós já fomos
afetados pela experiência negativa de ir ao mercado e descobrir que o produto
ao qual estamos habituados está em falta. O que fazer diante dessa situação? Substituí-lo? Não se
substitui um hábito sem que o desejante seja, de alguma forma, sacrificado. Ao desejante, não resta outra
alternativa senão lamber suas feridas, administrar suas faltas e seguir em
frente.
Infelizmente, pelas
circunstâncias da vida, fiz as minhas caminhadas à margem da música e do
futebol. Isso não quer dizer que eu seja um completo ignorante dessas duas
demandas. Claro que não. Tenho feito visitas às suas moradas, mas são visitas
sempre breves, irresponsável, superficial, sem maiores envolvimentos afetivos.
Sigo em frente,
carregando nas paredes da memória as músicas da infância ou aquelas que,
ocasionalmente, ouço no rádio do carro. Sei que o prejuízo é grande, mas já não
há mais o que fazer. A filosofia convidou-me ao silêncio. Aceitei o convite. O
hábito do silêncio fez da solidão a minha pátria.
Passei a conviver com os
incômodos silêncios que a filosofia despertava em mim. Na verdade, não eram
silêncios, mas gritos lacerantes que, como flechas, transpassavam meu corpo e
minha alma. Eu navegava por mares simultaneamente serenos e revoltos, em uma
jornada marcada pela inquietação. No silêncio, ouvi os
trovões das minhas tempestades.
Era,
de fato, um silêncio apavorante: o silêncio das perguntas e o silêncio das
respostas. Carregado de medos e com uma alma em crise, buscava,
desesperadamente, um pouco de segurança, buscava um ponto fixo como referência,
algo que me ancorasse em meio ao caos no qual me encontrava.
Assim,
amarrei-me ao mastro para ouvir melhor o canto da filosofia, na esperança de
encontrar sentido e direção. No entanto, ao fazer essa escolha de forma
impensada, sem plena consciência das consequências, tornei-me surdo para outros
cantos, inclusive aquele que, do Olímpo, com a sua lira, Apolo espalhava
pelo mundo.
Em certa medida, o medo
do desconhecido conduzia-me à busca de um refúgio seguro e tranquilo. Minha
alma era frágil demais para enfrentar o terreno pantanoso da loucura; sequer
possuía armas para me defender. Buscava na filosofia um porto seguro, onde
pudesse orientar-me na vida e guiar meus passos. Como um estoico, almejava a
serenidade da alma e esperava encontrá-la na filosofia.
Não queria a loucura;
queria a paz. O que eu não sabia, naquele momento inaugural, era que, ao
escolher a filosofia, estava, na verdade, sendo ludibriado. Buscava a paz, mas
acabara de me tornar prisioneiro do alçapão da loucura. Sozinho, desamparado, sem
nenhuma bengala para me apoiar, sentia-me como Édipo diante do enigma da
esfinge: “Decifra-me ou devoro-te.” Minha
vida estava em risco. O que fazer?
Não há paz na filosofia.
Ela é filha da crise, da angústia, do espanto, do thauma; essa é a sua
origem. Sem um pouco de loucura, não é possível ascender ao território dos
conceitos. Mesmo que você não se reconheça como louco, é exatamente isso que
você é, desde o momento em que escolheu trilhar os caminhos da filosofia. Neste
mundo, não há lugar para os normais. Aqui, todos são loucos.
Alice, perdida,
sem saber qual direção tomar, buscando orientar-se, pergunta ao Gato de
Cheshire:
“Que tipo de gente mora por aqui? “Nesta direção', disse o Gato,
girando a pata direita, 'mora um Chapeleiro. E nesta direção', apontando com a
pata esquerda, 'mora uma Lebre de Março. Visite quem você quiser, ambos são
loucos.' – 'Mas eu não ando com loucos', observou Alice. – 'Oh, você não tem
como evitar', disse o Gato, 'somos todos loucos por aqui. Eu sou louco. Você é
louca.' – 'Como é que você sabe que eu sou louca?', perguntou Alice. – 'Você
deve ser', respondeu o Gato, 'senão não teria vindo para cá.” (Lewis Carroll – Alice
no País das Maravilhas)
Por conta da pobreza,
minha alma não foi catequizada, nem pelo esporte, nem pela música. Quem é pobre
não tem tempo para o lazer, tampouco para os gozos do espírito.
Na
pequena cidade onde nasci e vivi até os meus doze anos, não havia televisão.
Melhor dizendo, havia, mas era um privilégio de poucos, que, no total, não
passavam de cinco.
Ainda
guardo na memória os nomes dos jogadores que fizeram parte daquela conquista
histórica: Ubirajara, Ubaldo, Sapatão, Mário Braga, Marinho, Nico, Jurinha,
Freitas, João Daniel, Quincas e Robertinho. Aquela bela imagem me marcou
profundamente; era a primeira vez que contemplava algo tão impactante. Sem
dúvida, um grande acontecimento.
Uma
cidade grande, um time grande, campeão - não era pouca coisa. Até aquele
momento, eu não conhecia outro time, senão o Cruzeiro, de minha terra natal,
dirigido por Asterino, que também acumulava a função de técnico. Minha cidade
natal era simples, mas possuía um time vencedor. Para nos orgulharmos de nosso chão,
bastava uma bela igreja para frequentar aos domingos e um time vencedor para
torcer. E tínhamos ambos: o Cruzeiro e a Igreja de Santo Antônio.
Depois das duras provações da semana, o domingo era um
dia de alívio e gozo: pela manhã, íamos à missa, pedíamos perdão pelos pecados
cometidos e, ajoelhados, em profunda contrição, jurávamos, diante do altar, que
não mais iríamos pecar. Mas, claro, na semana seguinte, lá estávamos novamente,
pagando as mesmas penitências pelos mesmos pecados.
À tarde, éramos presenteados com o espetáculo de
futebol que o Cruzeiro nos oferecia. Começávamos a segunda-feira com a alma
repleta de vitórias, reconciliados com Deus e embalados pelo esporte. Ficava
fácil enfrentar o peso dos dias vindouros.
Profundamente influenciado por aquela foto descortinada
numa página do jornal, tornei-me torcedor do Fluminense de Feira. Fui uma ou
duas vezes ao estádio. Cheguei a assistir a um grande confronto entre
Fluminense e Atlético de Alagoinhas, times de grande rivalidade. Antes de
acabar o jogo, assustei-me com um conflito entre as torcidas, com vários
torcedores machucados.
Em paralelo a esse fascínio pelo time estampado em uma
página de jornal, algo extraordinário estava para acontecer em minha vida.
Minha chegada à cidade grande coincidiu com o momento em que a seleção
brasileira iniciava sua trajetória em busca da conquista do tetracampeonato. O
Brasil fantasiou-se de verde e amarelo; não se pensava nem se falava em outra
coisa. O país inteiro parou: a seleção brasileira entraria em campo.
Eu, como todos, estava tomado por uma espécie de
fanatismo religioso. Aquela seleção parecia destinada a nos redimir de todos os
nossos pecados, a nos salvar das dores e dos sofrimentos, conduzindo-nos à tão
sonhada terra da vitória. Naquele momento, eu me sentia o homem mais rico do
mundo; minha pobreza era invisível aos meus olhos.
A conquista do Fluminense de Feira já havia sido grandiosa,
mas isso agora era algo de dimensão mundial. Eu me via profundamente
impressionado. A cada dia, um novo jogo; a cada dia, um espetáculo à minha
disposição.
Mesmo na cidade grande, onde a posse de televisores já
era bem disseminada, em minha casa ainda não tínhamos um. Para compensar,
recorria às casas de vizinhos mais abastados e, em algumas ocasiões, a espaços
públicos.
Nos dias de jogos, um colégio próximo à minha casa
colocava, em uma de suas janelas, uma televisão à disposição do público. Algo
bem democrático. O espetáculo ao alcance dos pobres. Na praça não tinha portas
nem janelas, era de todos: chegue, assista. Pela primeira vez, eu tinha uma
televisão disponível para mim. Mas não era só isso, o mundo em preto e branco
estava de partida, as imagens do novo mundo eram coloridas.
Eu
estava lá, aos meus doze anos, quando, em 21 de junho de 1970, a Seleção
Brasileira se consagrou tricampeã mundial com uma vitória acachapante sobre a
Itália por 4 a 1. Tomado por uma alegria indescritível, comemorei intensamente
aquele momento histórico ao lado da minha gangue infantil.
Naquele
dia, sem piedade, nas portas dos italianos conhecidos, gritávamos, dançávamos,
soltávamos fogos e comemorávamos mais a derrota deles do que, propriamente, a
nossa vitória. Não aceitávamos que eles, mesmo vivendo no Brasil, torcessem
contra a nação que os acolheu. Sempre fomos conquistados; agora, éramos os conquistadores. Aquilo não
era uma simples vitória: era a redenção de uma nação. Exercitávamos os nossos
direitos de vencedores. Ao vencedor, a glória; ao derrotado, a humilhação.
Imitávamos os grandes generais que, depois da vitória, ordenavam a pilhagem.
Novo mundo, novas cores. Algo impactante e
extraordinário estava acontecendo em minha vida. De certa forma, mesmo sem
perceber plenamente, eu estava mudando. Era como trocar de pele, atravessar
minha primeira grande metamorfose. Sim, graças ao futebol, o meu mundo em preto
e branco ficava para trás. Diante de mim, abria-se um novo mundo: um mundo
colorido.
Era um
gozo pleno, ninguém era maior que nós. Tínhamos o melhor time do mundo. Estava
compensado: ao deixar minha terra natal, abandonei o Cruzeiro, campeão daquele
mundo. Ao chegar na cidade grande, fui premiado por dois campeões: o Fluminense
de Feira e a Seleção Brasileira. Ninguém poderia ser mais feliz do que eu.
Tornei-me um fanático torcedor de futebol.
Naquele momento, eu não queria
saber que vivíamos em um regime de exceção, que nossas cadeias estavam
apinhadas de jovens idealistas que lutavam pela conquista de um mundo mais
justo. Não me importava em saber que os governantes utilizavam a Seleção
Brasileira para obnubilar a razão do povo, impedindo-o de tomar conhecimento
dos horrendos crimes cometidos em seus perversos submundos.
Os militares, responsáveis pelo
golpe que tomou o poder e impôs um regime ditatorial, sabendo que era
necessário desviar a atenção do povo, colocavam cera em seus ouvidos, evitando
assim, que ouvissem os gritos de dor provenientes de seus sombrios porões.
Pelé, que
durante toda a vida demonstrou ser um homem alienado das questões políticas,
reconhece em suas memórias como a seleção brasileira foi usada pelo regime
militar para ludibriar o povo. Através do riso e do circo, o povo tornou-se
cego para sua verdadeira realidade. “Na ocasião circularam comentários críticos
sobre a ditadura estar usando o futebol em seu próprio benefício. Como jogador,
não senti nenhuma pressão política por parte do governo, embora alguns
integrantes da comissão técnica fossem militares, como o capitão reformado do
Exército Cláudio Coutinho. A certa altura de nossa preparação, ele havia dito
que era importante vencermos porque isso acalmaria o povo."
Essa prática tem sido recorrente
ao longo da história. A política do "pão e circo" sempre foi
utilizada por governantes, especialmente por tiranos, independentemente da
tonalidade de sua bandeira ideológica, como estratégia para enganar o povo,
entorpecê-lo e conduzi-lo à servidão.
Vivíamos em uma nação de cegos.
Dopados pela alegria, não enxergávamos as tempestades.
No período daquela Copa, o Brasil
ostentava duas bandeiras: a do orgulho pelo futebol e a da vergonha na
política. Eu tinha apenas 12 anos e não sabia, de fato, o que estava
acontecendo. Mas e se soubesse? Acho que ainda assim continuaria torcendo pela Seleção
Brasileira, como todo o povo brasileiro, que, naqueles dias, envolto em um
ufanismo extremo, era uma nação calçando chuteiras, dançando e cantando a mesma
música:
“Noventa
milhões em ação, pra frente Brasil, no meu coração. [...] De repente é aquela
corrente pra frente parece que todo o Brasil deu a mão. Todos ligados na mesma
emoção, tudo é um só coração. Todos juntos vamos, pra frente Brasil, salve a
seleção.”
Sei
que, para muitos, a vida sem futebol e sem religião perde grande parte de seu
sentido. Sem o 'circo', a realidade se torna real demais, perde seus encantos e
fecha-se para um outro mundo, no qual, por meio de fantasias e delírios, o
homem encontra o sossego que o mundo real insiste em lhe negar.
Eu, como eles, também precisava da minha dose de ópio. Drogávamo-nos com religião e futebol — e éramos felizes.
Tudo
parecia definitivo. Tínhamos o melhor Deus e o melhor time do mundo. Não
precisávamos de mais nada. Vivíamos em uma nação vencedora. Nada de mal poderia
nos alcançar. Encontrávamo-nos protegidos e alegres. Orgulhosos, cantávamos: “Eu
te amo, meu Brasil, eu te amo / Meu coração é verde, amarelo, branco, azul-anil
/ Eu te amo, meu Brasil, eu te amo / Ninguém segura a juventude do Brasil.”
A
sensação de que todas aquelas conquistas seriam para sempre me envolvia. Ledo
engano: não durou muito. O amor logo se desencantou, as chamas das vitórias
começaram a se apagar; era um fogo-fátuo. O devoto foi se tornando
agnóstico e, em seguida, tornou-se um ateu convicto.
Vai saber por que, uma porta se abriu em minha vida: a
filosofia. Como era muito pobre e precisava continuar trabalhando para
sobreviver, o tempo que me sobrava era reservado única e exclusivamente para
estudar. Tinha que compensar as minhas faltas do passado. Precisava sobreviver.
Era importante estar em uma universidade, já era um avanço e tanto, mas não
bastava, era preciso fazer desse lugar o local de viver com dignidade nesta
vida. A filosofia era a minha saída. Diante dessa luta pela sobrevivência,
estando em uma encruzilhada, acabei por sacrificar duas paixões: a música e o
futebol. Tornei-me, não por vontade própria, ainda não eram deliberações
regidas pelo discernimento da razão, mas prisioneiro das circunstâncias, um amante
de Sophia. Sem consciência da escolha, escolhi. Fiz do templo de Atenas, a
minha morada.
Triste fico,
mas não arrependido. Há momentos em que você não pode não escolher, tem que
fazer uma escolha, mesmo sem saber a qual caminho ela vai lhe levar. O futuro é
terra estrangeira.
Sabemos, sim, que o que não nos falta são faltas. Se muito pedimos à vida, muito ela nos nega. Podemos
até desejar tudo, mas o que resta, de tudo o que desejamos, são as nossas
faltas. Somos seres desejantes. Somos, ao fim e ao cabo, a somatória das nossas
faltas. Quem sabe não esteja aí, nessa
natureza faltante, a beleza de ser o que se é, a beleza de ser humano. Se assim
não fôssemos, seríamos deuses. Nada nos faltaria. Seriamos seres completos. O
que, convenhamos, seria bastante entediante.
Se
buscamos, a cada instante, nos aprimorar, corrigir nossos erros e superar
nossas falhas, é porque, no mundo humano, almejamos ser, amanhã, um pouco
melhores do que somos hoje. Se assim é, sigamos em frente - sempre em frente - evitando,
sempre que possível, as armadilhas que tentam nos aprisionar ao passado.
Sigamos em frente, pois é de amanhã que a vida deve ser vivida.
Hoje, depois de uma longa caminhada, não posso negar a
falta que a música — o futebol, nem tanto — faz à minha alma. Assentado na
calma da idade, percebo que o prejuízo não teria sido tão grande se eu tivesse
conciliado a filosofia com a música. Mas, como já disse, tornei-me amante da
filosofia e, com medo de perdê-la, devotei todos os meus encantos ao seu
serviço.
Se errei ao tornar-me surdo à música, ao menos creio,
sem querer parecer vaidoso, que não me equivoquei ao escolher a filosofia.
Desde o dia em que a escolhi, nunca mais conheci a paz; ela se fez a fonte dos
meus desassossegos. Caminhando por seus caminhos,
descobri que não alcançaria a terra firme sem antes vencer a revolta do mar.
Tomei consciência de que, para conquistar a alegria, precisaria prospectá-la
nas minhas dores. “A vida tornou-se-me leve, a mais leve, quando exigiu
de mim o mais pesado” – Nietzsche - Ecce Homo). Ou, como disse Zenão: “Minha jornada mais
lucrativa começou no dia em que naufraguei e perdi toda a minha fortuna.”
Não
posso negar: em meio ao caos em que navegava, encontrei breves instantes de
sossego. Nos caminhos da filosofia, deparei-me com veredas que me conduziram a
afetos positivos. Convertidos em alegria, expandiram meu ser, tornando-me um
alegre caçador de mim.
Assim,
olhando para mim, olhando-me na filosofia, sigo em frente, sem fazer das faltas
do passado um obstáculo para as faltas que me aguardam amanhã. Alegre, sem
arrependimentos, caminho à espera de dias vindouros.
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