Já faz muito tempo, dava aula na Faculdade Jorge Amado, que nem Jorge Amado ainda se chamava, era Diplomatas, quando, no meio da aula, se não me engano, sobre política, comecei a delirar sobre literatura. No meio dos devaneios, uma aluna me interrompe e diz: professor, o senhor poderia nos indicar uns desses livros que o senhor está falando? Parei a aula e disse: abram o caderno e anotem. Naquele momento, indiquei uns vinte ou trinta livros, não me lembro mais, sobre a literatura clássica universal. Ao final falei. Boas leituras. Claro que eu tinha em mente, os indicar a lista de livros, uma recomendação de Kafka: “Penso que devemos ler apenas os livros que nos ferem, que nos apunhalam. Se o livro não nos acorda com um golpe na cabeça, por que o estamos lendo, então?” Nas minhas escolhas literárias, já tinha adotado a orientação de Kafka. Foi tomando machadadas na cabeça que eu fiz a transição entre a literatura e a filosofia. Tornei-me um viciado da autoflagelação. Sempre escolho o livro que me desconstrói, que feri a minha alma, que transpassa o meu coração, que desarruma a minha casa. O tempo passou... e como passouuuu!!! Alguns anos depois, já estava fazendo o meu doutorado, em São Paulo, recebo uma mensagem de uma aluna, que sequer me lembrava quem era... Depois de fazer alguns elogios, diz: “professor, acho que o senhor nem se lembra mais de mim, fui sua aluna na Jorge Amado e uma dia, durante uma aula..... Bem, li todos os livros da lista que o senhor sugeriu. Claro que, pelo tempo, fui além, li muito mais... estou lhe encaminhando um breve resumo de todos os livros de sua lista”. Não posso negar, fiquei muito alegre com o e-mail da aluna. Uma arvore deu frutos. Acho que naquele dia, minha alma fez festa, se não me engano, tomou um whisky para comemorar. Concluído o doutorado, voltei a assumir a sala de aula. Tocado por aquela experiência literária, passei a adotá-la em todas as futuras turmas. Já começava o semestre indicando uma longa lista de livros, variando segundo o tamanho da turma, deixando aos alunos a responsabilidade de escolher e comprar um dos livros da lista. O livro escolhido, devia ser lido e, no final do semestre, seu conteúdo devia ser socializado com todos os outros alunos da sala. Em certa medida, tornou-se uma atividade complementar da disciplina que estava ministrando naquele semestre. Mesmo cada aluno lendo só um título, como todas as leituras seriam partilhadas, acabaria que toda a turma tomaria conhecimento do conteúdo de todos os livros. Lê um, ouve a história de trinta ou quarenta. Fiz isso por muitos séculos. Acabei por transferir para os meus alunos, uma experiência pessoal. De verdade, tinha quinze anos quando conheci os livros, tornei-me dependente deles. Eles me salvaram. Sem eles eu não sei o que teria sido de minha vida. Hoje, 05/03/2021, uma nova aluna, de um outro canto do mundo, me mandou uma mensagem. Provocado por ela, visitei o meu passado. Vi que plantei algumas sementes. Geraram bons frutos. Que bom. Fico feliz. Exemplo como esses indicam que não erramos na caminhada. Escolhemos ser professor. Não poderíamos ter feito melhor escolha.
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