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DOBRAS DA MEMÓRIA - Autor: Joceval A. Bitencourt
setembro 04, 2018Prof. Dr. Joceval Bitrencourt
DOBRAS DA
MEMÓRIA
Escrever sobre
experiências vividas é,
retrospectivamente, reconstruir um passado, composto de múltiplos pedaços de
uma determinada experiência – ou de múltiplas.
É uma crônica que alguém faz de um fato ou de uma realidade, seja como
sujeito da história, seja como um mero observador. E
sobre a veracidade dos fatos? É possível essa veracidade? Onde ela se encontra?
Qual o limite de subordinação do narrador aos fatos narrados? Não erra André
Gide, quando diz que as memórias são sempre apenas meio sinceras,
por maior que seja a preocupação com a verdade: tudo é sempre mais complicado
do que se diz. Nem mesmo quem narra suas próprias memórias tem plena segurança de que
os fatos narrados correspondem, com fidedignidade, aos fatos que ele viveu. Tudo pode não
passar de lembranças desbotadas de um passado que atende muito mais ao que o
narrador gostaria de ter vivido do que, realmente, ele viveu. Muitas vezes essas imagens
opacas, descoloridas pelo tempo, que são oferecidas pela memória, vêm repaginadas, recebem outras configurações, outras cores, agora
mais fortes, tornam-se mais luminosas. Por
exemplo, a casa das suas memórias, que você descreve, nem sempre corresponde à
casa em que você viveu durante sua infância.
Lembro-me que,
trinta anos depois, ao voltar à minha cidade natal, fui visitar a casa na qual
passei parte de minha infância. À exceção
da pintura, a casa permanecia do jeito que eu
havia deixado, nada havia mudado. Mas, para minha imensa surpresa e decepção, aquela
não era a casa de minha infância. Tudo era diferente. As salas, os quartos, a
varanda, o quintal, tudo parecia muito pequeno. A casa de minha
infância encolheu-se. Não correspondia mais à casa que eu guardei em minhas
lembranças. Quantas mentiras narrei para os meus amigos sobre aquela casa.
Todos conheciam a grande casa de minha memória, onde eu brincava e era feliz.
Se tivessem a oportunidade de conhecer a casa real, não mais confiariam em
minhas memórias. Ao final da visita,
entristecido, vi que a casa de minha infância, aquela que eu descrevia nas
minhas memórias, era uma casa de afetos, a casa de
sonhos, de fantasias de uma criança que conquistava o mundo sem sair de seu
quintal, e o seu quintal era do tamanho do
mundo que ele conquistava. Assim o narrador só carrega do seu passado o seu arquétipo, no qual o presente lhe fornece novos
conteúdos que se configuram conforme a necessidade que o texto impõe. Aqui, não
há compromisso com a verdade. Diferentemente de um escritor de contos
policiais, que tem domínio de toda a trama; nada
foge de seu controle, o fim de sua trama já se
encontra, desde o início, programada em cada
personagem, e cada desvio, cada silêncio, cada
pista, encaminham-se a uma única direção:
revelar o criminoso. Se não cumprir esse roteiro, previamente determinado, o
objetivo não será alcançado. Quem escreve memórias, não tem – nem deve
ter – esse mesmo domínio, nem sobre o conteúdo, nem
sobre a direção de sua narrativa. Esta dependerá da forma pela qual os fatos entram em cena. Existem infinitas possibilidades
de se encenar um mesmo fato. O texto de memória é um texto aberto, nada o
condiciona ou o determina. A memória visita os fatos, mas não se torna prisioneira
deles.
Nem sempre as
lembranças obedecem ao chamado do narrador. Como se fossem dotadas de vontades
próprias, aparecem e desaparecem, quando querem. Não se fazem presentes,
segundo o tempo e a necessidade que o texto exige. Não poucas vezes, quanto mais o narrador precisa delas,
mais elas se ocultam, se escondem, se insinuam, se apresentam em partes fragmentadas,
não oferecendo ao narrador, uma unidade acabada, com uma trama lógica bem
definida. A imprecisão do aparecimento dos fatos na lembrança acaba por exigir
do narrador que ele vá além dos fatos ou que não os considerem como única
condição de sua narrativa. Esse trabalho de reminiscência é o exercício de se evocar lembranças das camadas mais
profundas da memória. Cada camada revelada, anuncia, ao mesmo tempo, infinitas
outras camadas que permanecem veladas, à espera de sua revelação. No jogo das
dobras da memória o narrador pode ter o domínio dos fatos, na dobra que
aparece, mas, muitas vezes, a base que sustenta a sua verdade fatual encontra-se silenciosa na dobra que a antecede, que é a sua
causa originária. O problema se apresenta quando o narrador não encontra o nexo
causal entre a dobra, que é efeito, a que aparece, e a dobra que é a causa, a
que se esconde. Nesse momento, o narrador, por sua própria escolha, num livre
voo de sua imaginação, subordinado à ordem dos
fatos, aos seus desejos, sonhos ou sintomas, assume a responsabilidade de criar
os nexos entre os fatos, estabelecendo entre eles uma ordem lógica, dando sentido a um drama que, sem a sua intervenção,
ficaria ininteligível. Aqui, o narrador deixa de ser um contador de história,
um mero relator de fatos, tornando-se um criador, inventor dos mais diversos
gêneros literários.
Assim, Pedro Nava indica os caminhos que
ele percorre para narrar suas memórias: “Tomo quatro ou cinco
pedaços de verdade, acrescento uma parte de imaginação e, tirando conclusões,
faço uma construção verossímil”. O
leitor deve ler as memórias alheias como se estivesse lendo um romance, uma literatura de
ficção. O que se resgata aqui é um tempo sem
tempo, o tempo da memória, o tempo das lembranças. Falar do tempo da
memória é falar de um tempo temporário, no
qual tudo pode aparecer, permanecer e desaparecer.
Assim, as memórias, oferecidas na ordem do tempo, estão sujeitas ao seu desaparecimento. O
papel do memorialista é oferecer essas lembranças ao mundo, antes que elas se apaguem nas linhas do tempo. Resgatar, retrospectivamente, por meio da memória, o drama que uma determinada realidade histórica
presenciou, não significa apenas suscitar o conteúdo do tempo na memória, mas sim trazer uma
re-criação de um passado vivido por um determinado sujeito. Muitas cenas
desse passado foram, de fato, vividas por ele; outras foram
vivenciadas por outros sujeitos, e ele, como um bom
ladrão, se apropriou delas, fazendo-as suas.
Isso nos leva a
dizer que, fatos e tempos, só adquirem significações para um observador particular. Cada sujeito constrói, a partir do tempo em que viveu, as
representações de mundo, que, ao se fazerem presentes em sua alma, tornam-se
carne de seu corpo. O que importa se um outro sujeito viu, de forma diferente,
o fato que o narrador está oferecendo ao seu leitor? Ele viu diferente porque não é ele próprio o sujeito do tempo narrado. Os fatos se apresentam a cada sujeito, segundo a perspectiva de seu
olhar, segundo a sua intencionalidade. O mesmo fato, visto por olhares
distintos, naturalmente geram representações distintas. Uma representação não é
mais verdadeira que a outra, apenas são duas perspectivas distintas, de
sujeitos diversos, captando manifestações fenomenológicas distintas da ordem do
real.
O cronista não faz
ciência, não faz história. Ele somente
narra – sob a sua perspectiva – fatos, do passado ou
do presente, na maioria das vezes fatos banais, que povoam nossos mundos
particulares sem que, sobre eles, pela insignificância que representam, sejam
lançados os nossos holofotes. Poder-se-ia dizer que o memorialista é um egoísta. Narra fatos e experiência que
ele viveu, sem nenhum compromisso ou responsabilidade de alcançar os afetos
alheios.
Em certa medida, o
cronista se parece com o poeta. O poeta faz poesia para si mesmo. Ele escreve sem
direção. Sua poesia não atende à necessidade de um outro eu que não ele mesmo. É como
se ele fizesse poesia para o seu próprio consumo, para atender às dores
de sua alma, e não às dores de almas desconhecidas. O
sangue com o qual escreve os seus versos saem
de suas próprias veias. Sobre o outro, só lhe resta o silêncio. Esse processo
de criação que, no primeiro momento, pertence por inteiro ao poeta, no segundo momento, ganha o mundo, vai em busca do outro,
do desconhecido, do sem rosto. O poema, ao ser concluído, desgarra-se do
seu criador, conquista sua carta de alforria.
Livre das amarras de quem o concebeu, agora pode alçar voo, ganhar o mundo. O
poeta deve dizer ao seu poema, assim que o concluir: - Se
afaste de mim, vá em busca de um outro eu, que não eu, que espera por mim. De
certa forma, é possível dizer que o leitor é o responsável por concluir a obra
que o autor começou.
Esse processo de
desapego, que tem o poeta em relação à sua arte, deve ter o artista em relação a todas as outras artes.
Imagine um pintor que, depois de ter concluído
a sua obra, se apaixonasse de tal forma por
ela que a impedisse de ser vista pelo mundo?
Sem o reconhecimento do olhar do outro, a obra de arte desaparece. Tudo poderia
não passar de uma alucinação pessoal, como se pode traduzir nos versos de Fernando Pessoa: “Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas! Eu, que
não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo? (...) Tenho sonhado
mais que Napoleão o fez. Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidade do
que Cristo. Tenho feito filosofias em segredos que nenhum Kant escreveu. Mas
sou, e talvez sempre serei, o da mansarda. Ainda que não more nela (...)”.
A generosidade do
artista é perder a paternidade sobre a sua arte. Quando a arte cai no mundo,
seu autor desaparece. A epifania da arte exige a morte de seu autor. E quem
será o autor? O leitor, o admirador. O poema lido, por outro, que não o seu
criador, jamais corresponderá à intencionalidade presente no ato de sua
criação. Ao ganhar o mundo, a arte ganha infinitos autores. Na intencionalidade
de seu olhar, cada sujeito vai re-criando a arte, como uma criação sua. No
silêncio de sua subjetividade, na sua mais profunda singularidade, é que o
sujeito se comunica com a arte, quando por ela é afetado, como nas palavras do poeta português: “E os que leem o que escrevo, na dor sentem
bem, não as duas que ele teve, mas só a que eles não têm” – O alvo do poeta
é não ter alvo algum. Assim também é o memorialista. Quando abre os armários de
suas lembranças, não está querendo narrar para o leitor quem ele é, só está
querendo revelar para ele mesmo, revisitando o seu passado, a sua própria
trajetória existencial. Como em uma sessão de psicanálise,
através de suas memórias, ele está fazendo um
enfrentamento com suas dores, seus sintomas, seus fantasmas. De certa forma,
busca fazer uma arqueologia histórica de suas passadas em algum canto do mundo.
Às vezes, se multiplica, inventa, re-inventa, recorre
a terceiros, e assim se perde nos outros, para melhor se localizar, se apresenta ou se esconde,
buscando recompor a sua identidade nos caminhos que ele percorreu e nos
quais se reconhece. Nesse processo, não tem a intenção de narrar o que é, se
contenta a contar ao mundo o que parece ser. Pessoa vem nos lembrar que “O poeta é um fingidor, finge tão
completamente, que chega a fingir que é dor, a dor que deveras sente”.
O leitor, este não se revela, não se
reconhece na clareza das memórias narradas. Por analogia, ele se remete às suas
próprias experiências, às suas próprias recordações, rememorando-as. A
memória do narrador só desperta as suas próprias lembranças. Quanto às vivências, estas só adquirem sentido por quem as viveu. As memórias são sempre singulares, elas
revelam as dores e as alegrias da experiência de vida do narrador. Entretanto,
apesar dessa vivência entre os fatos narrados, O texto que as narram escondem
segredos para além do domínio do próprio narrador. Quem sabe, não é justamente nesses segredos,
em seus silêncios mais profundos, que a multiplicidade dos sem nomes, sem
rostos, se identificam, se revelam, se reconhecem. Diz Fernando pessoa: “A
essência da ironia consiste em não se poder descobrir o segundo sentido do
texto por nenhuma palavra dele, deduzindo-se
porém esse segundo sentido do fato de ser impossível dever o texto dizer
aquilo que diz”. Quem vir o tapete terminado, nunca deve buscar compreender a
sua feitura, olhado o seu avesso, esse é um caminho que só pode ser percorrido
pelo artesão que tramou aquelas linhas, compôs a configuração do tapete que
você contempla. A pintura não se explica, se olha. Ao contemplador, basta a
fluidez da contemplação. Não pergunte a quem o fez: - Por que ele o fez? Por que tal
experiência foi assim e não diferente? Por que tal
poema se concluiu dessa e não de outra forma? Por que tal obra foi pintada dessa e não de uma outra forma
qualquer? Qual a fidedignidade existente entre a
correspondência dos fatos reais e os fatos resgatados nos armários da
memória? Não cabe ao artista responder
a essas perguntas. Simplesmente é assim, ele faz poesia,
música, arte, tapetes, porque faz, pronto, é de sua natureza fazer, não poderia
fazer outras coisas. Querer saber o porquê dele, equivale a perguntar a um pé
de jaca, porque ele dá jaca, a um pé de manga,
porque ela dá manga? Não saberia responder. Por
natureza, a jaqueira dá jaca, a mangueira dá
manga, o poeta faz
poesia, o memorialista narra ou cria
memórias... simples assim... a natureza seguindo o seu ofício.
Sem querer ser aristotélico, e já o sendo, a
causa final da arte, não importa as suas mais diversas manifestações, inclusive
a literária, já se encontra na causa inicial, em potência. O artista é o ser através do qual a potência é atualizada. Mas ele não a cria, seu
papel é quase que secundário, ele só descobre ou revela o que estava coberto ou velado. Atualiza o que já é em
potência. O belo que vemos é a causa final de algo que já era belo, enquanto
potência. Não precisa de muita filosofia para compreender essa trama da
Metafísica aristotélica. Em certa medida, essa é a armadura conceitual com a qual
a razão do senso comum operacionaliza o mundo que se apresenta aos seus
sentidos. A essa mesma trama lógica recorre a Religião, quando busca uma base racional para
justificar a sua causa final: Deus.
Não faz muito
tempo, vi, em uma reportagem na TV, um repórter perguntando a um carranqueiro – artista que produz carranca
–, um ribeirinho do Rio São Francisco, qual era o
processo usado por ele para produzir carrancas tão belas? Ele nunca leu
Aristóteles, mas a sua resposta foi aristotelicamente muito simples. Disse ele:
- Fecho os
olhos e imagino a carranca que desejo fazer. Quando essa ideia me parece
concluída, saio a campo
para realizá-la. Entro na mata, olho para
todas as árvores, fico catando para saber em
qual delas a minha carranca se esconde. Não demora muito, vejo, num determinado
troco, a carranca que quero mostrar ao mundo. Levo aquele tronco para casa.
Começo a trabalhar, tirando daquele tronco tudo o que não é carranca, o que
sobra; ao final desse processo, é a bela
carranca que eu buscava. O que eu fiz foi revelar uma carranca que já se
encontrava velada, adormecida, dentro da árvore que eu escolhi.
Tal qual o carranqueiro, o memorialista revela
aquilo que se encontra adormecido nas dobras empoeiradas das suas lembranças. Simples assim.
Como
o corpo que, para perder sua flacidez, imposta pela passagem do tempo, precisa
exercitar-se, fortalecendo seus músculos, o mesmo ocorre com a memória. Ela
precisa ser exercitada. O memorialista vai adquirindo, por meio da experiência,
a habilidade de investigar, nos recantos das memórias, em suas camadas mais
profundas, as lembranças fugidias. Sem essa prática, quase que diária, as
memórias atrofiam-se, tornam-se preguiçosas, seus voos não alcançam grandes
alturas, suas passadas não percorrem grandes distâncias.
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