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O CUIDADOR DE LIVROS - Autor: Joceval A. Bitencourt
julho 28, 2018Prof. Dr. Joceval Bitrencourt
Sem que eu percebesse, os livros foram indicando os caminhos que eu deveria
seguir na vida. Depois dos nossos primeiros encontros, como se eles tivessem
vontade própria, foram seduzindo-me, tornando-me prisioneiro de suas tramas. Já
não podia livrar-me deles, tornei-me um dependente. Foi essa dependência que me
fez, num determinado momento de minha vida, passar de recepcionista da área
administrativa do Mosteiro de São Bento, à responsável por sua Biblioteca. Entretanto,
até tornar-me cuidador de livros, um longo caminho foi percorrido. Em um texto
anterior – Entre amores e dores -, narrei a minha convivência
com os livros, enquanto trabalhava como recepcionista do Mosteiro. Pois bem,
foi ali, naquele canto, que me tornei escravo dos livros. Percebia que, quanto
mais lia, mais exigentes iam se tornado minhas escolhas literárias. Não demorou
muito, trouxe para o convívio da literatura minhas primeiras leituras
filosóficas. Não foi um encontro fácil. Encontro de estranhamentos. Como já
narrei, Sartre, através da Náusea, causou um mal-estar na minha
alma. Essa primeira experiência negativa com a filosofia foi o motivo que me
levou a fazer filosofia. Acho que escolhi filosofia como um certo
desafio pessoal. Ela teria me dito que o seu
território não me pertencia, que aquele mundo estava muito
distante do mundo do qual eu vinha. Minha pobreza não era só das coisas
materiais, eram também das coisas espirituais. Quando menos percebi, estava
fazendo cursinho. Em seguida, fazendo vestibular para a faculdade de filosofia.
Sentia que as pessoas me olhavam de forma estranha, como se se perguntassem:
como esse moço pode ter escolhido estudar filosofia? Como ele vai
sobreviver? Não teria sido mais inteligente ter escolhido o curso de
Direito? Este será mais um que teremos que ajudar para o resto da vida? Apesar
do olhar do outro, segui em frente. Fui aprovado para as duas Universidades
que, à época, tinham o curso de filosofia: UFBA e UCSAL. O fato de ter sido
aprovado em duas Universidades não era nenhum mérito. A procura por filosofia
não é grande, não é um curso que requer muita inteligência para se
obter a aprovação para a graduação em Filosofia. A facilidade com que se é
aprovado no vestibular para Filosofia, é diametralmente oposta às
dificuldades que vão se apresentando em seu percurso, até a sua conclusão.
Muitos entram, poucos concluem. Hora de novas escolhas. Em qual das duas
instituições deveria ingressar? O curso da Universidade Federal era matutino, o
da UCSAL, noturno. As contingências da vida já determinavam a escolha a ser
feita. Trabalhava os dois turnos e, por necessidade de sobrevivência, não tinha
como deixar o trabalho. Portanto, só restava-me uma escolha, a
UCSAL. Um novo problema se apresentou: como pagar a mensalidade da
Universidade, já que se trata de uma instituição particular? Como acrescentar
mais essas despesas àquelas que eu já tinha, relativas a aluguel,
alimentação e transporte, contando apenas com um salário proporcional à
atividade de recepcionista que eu exercia? Novamente o mundo real lançando
sombras sobre o mundo das ideias. O curso de filosofia começava a se distanciar
dos meus sonhos. Naquele momento, parecia que eu estava condenado a ser
escolhido pela realidade que a pobreza nos impõe. Basta de sonhos, a realidade
me empurrava para a vala das almas invisíveis. Com o salário que ganhava, não
tinha como pagar a mensalidade que a UCSAL cobrava. Mais uma vez, a Deusa
Atena, acho eu, a convite de Sócrates, veio ao meu socorro. Uma senhora
generosa, Oblata do Mosteiro, vendo o meu drama, ofereceu-se para pagar a
metade do valor da mensalidade. Não sei por onde anda essa senhora,
nem sei se ainda se encontra neste mundo, mas a ela devo a possibilidade de ter
trilhado pelos caminhos da filosofia. Um novo mundo se abria para mim. Sophia
me convidava a bailar. Ainda não sabia direito o que era filosofia. Mas, ainda
hoje me lembro do meu primeiro dia de aula. Com que orgulho me sentei naquela
sala e comecei a ouvir Tomás Cavazzuti, um italiano, ex-jesuíta, Doutor em
Filosofia, professor da disciplina História da Filosofia Antiga, falando de
Heráclito e Parmênides. Não entendia absolutamente nada do que falava aquele
professor. Mas, vai lá saber por que, uma agradável sensação tomava conta do
meu corpo, me confirmando que, mesmo sem que eu tivesse plena consciência do
fenômeno que ocorria naquele momento, acabara de chegar
ao lugar que buscava. Uma certeza afirmava-se sobre o meu espírito: encontrei a
terra onde ergueria a minha morada. Finalmente, depois de andar perdido pelas
encruzilhadas da vida, encontrei-me, estava em casa.
Durante o dia, trabalhava como recepcionista, à noite, estudava
filosofia. Vale lembrar, que, mesmo tendo me matriculado na UCSAL,
também me matriculei na UFBA, trancando a matrícula em seguida, mas mantendo o
direito à vaga conquistado no vestibular. Faço essa observação, porque será
importante para outras escolhas que teria que fazer em breve. A realidade vai
traçando novos caminhos, nos impondo novas escolhas. Ao começar formalmente a
estudar filosofia, assustei-me com a distância que existia entre mim e ela.
Encontrei colegas com leituras mais avançadas que as minhas. Morria de inveja
ao vê-los participando das aulas, enquanto eu, um pouco prisioneiro de minha
ignorância, não me expunha, recorrendo à minha timidez, protegia-me do olhar do
outro. Se quisesse continuar alimentando a minha fantasia de estudar filosofia,
tinha que correr atrás do prejuízo. Tinha que ler, agora, livros mais técnicos
de filosofia. Claro que eu já gostava dos livros, não posso negar, e isso me
ajudou a enfrentar a aridez da filosofia. Por diversos caminhos possíveis, toda
literatura, vez ou outra, visita a casa da filosofia. Portanto, sem que eu
desse por mim, ao me entregar à literatura, em certa medida, já estava
escolhendo a filosofia. Agora, o voo era mais alto, estava no mundo onde os
conceitos são fabricados. A filosofia me convidava a contemplar as
estrelas. Tinha que entender o percurso através dos quais os
filósofos vão fabricando suas teias conceituais. O tempo livre que eu tinha no
trabalho era providencial, usava-o para estudar, mas não era suficiente para dá
contas das demandas do curso. Bem, nem tudo era tão ruim assim, já morava
sozinho, tinha um quarto e sala inteiro para mim e meus livros. Um grande luxo,
para quem, pouco tempo atrás, vivia num apartamento de dois quartos, numa
república de estudantes, festeiros e barulhentos. Como trabalhava o dia
inteiro, tinha aula até as vinte e duas horas, já chegava em casa muito
cansado, não tinha mais condições físicas para estudar. Percebi então que as
coisas não estavam indo bem. Não bastava fazer um curso, precisava fazê-lo bem,
afinal de contas, estava fazendo uma escolha de vida. Que me adiantaria um
curso de filosofia, se eu não pudesse fazer uso dele para a minha própria
sobrevivência? Não cursava filosofia por um diletantismo burguês qualquer.
Fazer filosofia, era uma escolha existencial. Estava apostando nesse curso para
dar uma direção à minha vida. Caso contrário, continuaria na vala dos sem nada.
O acaso volta a bater à minha porta. Surgiu a oportunidade de, mantendo-me
no mesmo emprego do Mosteiro, mudar de função. Eram duas vagas: uma na
administração, a outra na biblioteca. A primeira era para continuar trabalhando
o dia inteiro, com o dobro do salário que eu ganhava. A segunda, na biblioteca,
trabalharia meio turno, mas permaneceria com o salário que recebia na função
anterior. Novamente me vi diante de uma escolha difícil. A lógica do mundo real
determinava que eu escolhesse a função que pagaria mais. O delírio do espírito
me direcionava a escolher a biblioteca, mesmo ganhando um salário bem menor. O
que fazer? Atender às necessidades da vida ou atender aos delírios do espírito?
É claro que todos que me cercavam, conclamavam para que eu escolhesse a
primeira opção, já que se tratava de um bom salário, me daria segurança,
enquanto nele permanecesse. Fiz os cálculos, não teria aumento de salário, mas
poderia deixar a UCSAL e ir para a UFBA. Economizaria a metade do
valor da mensalidade, por um lado, por outro, libertaria a boa senhora de
custear parte dos meus estudos. Vivendo modestamente, conseguiria
atravessar esse deserto, caso fosse em direção aos livros. Foi o que fiz.
Tornei-me responsável pela Biblioteca do Mosteiro de São Bento da Bahia.
Minha ida para aquela biblioteca provocou um verdadeiro cataclismo em minha alma. Claro que eu já a conhecia, a frequentei por quatro anos. Mas, agora era diferente, ela encontrava-se aos meus cuidados. Quando entrava naquele portal, sentia-me como Maquiavel que, depois de um longo dia de trabalho, retornava para sua casa e, numa cerimônia quase que religiosa, preparava-se para ir ao encontro dos habitantes de sua biblioteca. “A noite cai, volto para casa. Antes de entrar no escritório troco a vestimenta de todos os dias, suja e enlameada, para vestir as roupas da corte real e pontifical. E vestido apropriadamente penetro no círculo dos homens da Antiguidade. Recebido afavelmente, sirvo-me do alimento que por excelência me nutre e para o qual nasci. Não tenho vergonha de conversar com eles, de interrogá-los sobre as razões do seu comportamento. E como a humanidade me respondem. Passo então quatro horas sem qualquer sobre de tédio, sem temer a pobreza, esquecido dos meus tormentos. A própria morte não me assusta”. De certa forma, passei a conviver mais com livros do que com gente. Formei, em torno deles, uma comunidade de amigos, que frequentavam a minha casa, tinham acesso aos recantos de minha alma, se recolhiam, voltavam para a morada das estantes, quando eu precisava de um outro amigo para substituí-los. Na companhia deles, passei os melhores momentos de minha vida. Tem gente que fala com a natureza: bom dia sol, bom dia flores, bom dia, estrelas, chuvas... Tenho inveja de quem tem esse dom, não é o meu caso, não tenho essa intimidade com a natureza. Meus delírios eram outros. Falava com os livros. Melhor, falava com os seus autores. De certa forma, ler é dialogar com a mente de quem o escreveu. Como ler Kierkegaard, sem conviver com os seus dramas religiosas? como ler Confesso que Vivi, sem participar da vida política de Pablo Neruda? como ler Crime e Castigo, e não reconhecer nos seus personagens, os dramas de sua própria alma? como ler Fernando Pessoa, sem dar conta de que seus heterônimos são a expressão de sua alma dividida em múltiplos pedaços? De certa forma, é possível dizer que toda obra é uma autobiografia de quem a escreve, mesmo quando, por domínio de uma técnica de escondimento, o autor busca manter-se distante daquilo que escreve. Não se esconde por muito tempo, o rabo logo aparece. A obra é um campo aberto para o exercício das neuroses de seus criadores. Então, ao meu modo, buscava conhecer, por trás do texto, quem seria o seu autor, como ele era, o que fazia da vida, onde viveu, quais os seus amores, suas dores. E, buscando conhecê-lo, entre as dobras dos seus textos, sentia-me seu próximo, tomava-o como amigo, mesmo que ele nem sequer soubesse de minha existência. Os autores eram meus amigos, mesmo sem o seu consetimento. Assim, de alguma forma, todos os habitantes dos labirintos daquelas estantes, eram meus próximos, eram meus amigos virtuais. Aquele território era todo meu. Naquele canto, acessava mundos, visitava cidades, conhecia castelos, conquistava os meus moinhos de ventos, encantava-me com os amores alheios, como se meus os fossem... Era o meu paraíso. Jorge Luiz Borges, um amigo a quem eu sempre convidava para as minhas festas, já completamente cego, quando foi nomeado Diretor da Biblioteca Nacional da Argentina, escreveu um poema: Poema de los dones, no qual narra o sentimento que aquela biblioteca causava em seu espírito: Nadie rebaje a lágrima o reproche, Esta declaración de la maestria, De Dios que con magnífica ironia, Me dio a la vez los libros y la noche. [...]Lento en mi sombra, la penunmbra hueca exploro com el báculo indeciso, yo, que me figuraba el Paraíso baja la especie de una biblioteca. À primeira vista, aquele canto era assutador. Ao anoitecer, muitos se recusavam a passar por lá, sempre diziam que viam almas mais letradas lendo entre as estantes. Nunca pude constatar tal fato. Acho que as almas penadas não gostam muito de mim, sempre estão onde eu não estou. Mesmo durante o dia, alguns visitantes se recusavam a permanecer sozinhos, enquanto faziam suas pesquisas. Lembro-me bem do dia em que uma amiga foi visitar-me no trabalho, convidei-a a conhecer a biblioteca. Ela assustou-se. Primeiro, eu não sabia que a coitada era alérgica à poeira - coisa bem comum numa biblioteca. A esse desconforto inicial, somou-se o fato de ela não ter gostado do ambiente: achou tudo muito estranho, um monte de livros velhos, segundo ela, um ambiente meio macabro, com aquele aspecto sombrio, à meia luz, estantes altas, de madeiras escuras, um silêncio tumular. Tudo isso, vestido de uma decoração do século XVIII. Ela então, de forma muito direta, me perguntou: - Como alguém pode trabalhar num lugar assim? Percebi, naquele momento, que o que eu via, seus olhos não alcaçavam. O que para mim era o Paraíso, para ela era o Inferno. Não se demorou muito naquele lugar. Ao sair, como se estivesse morrendo de pena de ver seu pobre amigo trabalhando num lugar daquele, querendo salvá-lo, falou: - “Vou falar com alguém que eu conheço para ver se ele consegue arrumar um emprego para você. Você merece coisa melhor”. O que ela não sabia, é que eu já tinha o melhor emprego do mundo. Encontrava-me no melhor dos mundos possíveis. Naquele momento, fiquei triste por minha amiga, lembrei-me de Platão: o essencial é invisível aos olhos.
Trabalhava no turno da tarde, pela manhã fazia o curso de filosofia na UFBA. Para não aumentar as minhas despesas, saía da faculdade e, antes de ir para o trabalho, almoçava no restaurante universitário da UFBA. Não gastava com o almoço, já era uma boa ajuda de custo. Fazia parte da programação de como sobreviver com um pequeno salário. Tudo que eu ganhava cobria as contas de água, luz, transporte; com o que sobrava, fazia uma feira que deveria durar o mês. Não sobrava mais nada. Não tinha festa, cinema, farras, nada. Levava uma vida muito simples. Era pobre, mas não triste. Ainda não conhecia Epicuro, mas já vivia segundo os seus ensinamentos. Para se ser feliz, precisa-se de muito pouco. Basta: “um pouco de pão, um pouco de palha, um pouco de agua, e a amizade (Philia)”. Assim, administrando as adversidades da vida, seguia meus dias, fazendo o que eu mais gostava: estudar... mais que isso, estudar filosofia. Entretanto, sobrava-me pouco tempo para os estudos. O curso de filosofia exige muita dedicação às leituras. Não basta passar no vestibular. As dificuldades começam quando você recebe os primeiros convites para conhecer as moradas dos filósofos. Como encontrar tempo livre para estudar? Aqueles, filhos da fortuna, com o ócio tão necessário para se dedicar aos estudos, levam uma grande vantagem sobre os filhos da pobreza, a quem, em nome da sobrevivência, o ócio lhes foi roubado. Tentando contornar minha falta de tempo para os estudos, adotei uma estratégia: chegava do trabalho às dezoito horas, às vinte horas já estava dormindo. O despertador me acordava à uma hora da manhã, levantava, tomava um café forte e começava a estudar. Tive dificuldade de me adaptar a essa forma de vida espartana, mas, aos poucos, fui adestrando o meu corpo à situação, disciplinando-me. Não demorou muito, tornou-se um hábito, já não me causava desconforto. Quando os primeiros raios de sol anunciavam a chegada do dia, parava os estudos, preparava-me para ir para à Universidade, as aulas começavam às sete e trinta. E assim, sacrificando parte do meu sono, fui ganhando tempo para os estudos, conquistando conhecimentos que me possibilitaram sobreviver no curso de filosofia, com um certo reconhecimento de meus professores que, vez por outra, deixavam-me saber que eu estava no caminho certo. Finalmente, tinha organizado o meu mundo de tal forma que ele subordinou-se, adequando-se à minha prioridade: estudar.
Agora, estava, de uma vez por todas, no caminho que eu queria, era, de
fato, um estudante de filosofia. Se não bastasse isso, encontrava-me como
senhor daquele mundo de ideias. Todo um acervo, com mais de 200 mil volumes
encontrava-se ao alcance dos meus delírios. Àquela Biblioteca, devo
tudo, nela vejo-me, nela reconheço-me. Ao longo da história ocidental, desde a
sua fundação, lá pelos anos 530 d.C, em Monte Cassino, Itália, o Mosteiro de
São Bento foi, merecidamente, reconhecido como uma instituição que sempre
cuidou dos livros. Ao longo do tempo, em seus claustros, os livros sempre
encontraram um lugar seguro, protegidos dos conflitos históricos ou dos desastres
da natureza. Esse cuidado e valorização dos livros, São Bento já demostra na
sua Rega: Ora et Labora, quando, no capítulo 48º, intitulado “Do
trabalho manual” recomenda que, em uma parte do dia, o monge deve se
dedicar à leitura, pois através dela o monge busca a verdade e se aproxima de
Deus. Diferentemente dos monges, que buscavam, na leitura, um caminho para se
aproximarem de Deus, eu, a quem a fé faltava, encontrava-me muito
mais preocupado em salvar a minha alma neste mundo. Minha fé, minha verdadeira
devoção, era pelos livros. Sempre achei que somente por meio deles encontraria
o elixir para cuidar de minha alma enferma. Meu olhar
estava voltado para a Ágora grega, era no templo de Heráclito, Parmênides,
Sócrates, Platão, que eu buscava a minha salvação. Tornei-me devoto da Deusa
Atena. Nela, a minha alma buscava conforto e orientação de como sobreviver, com
uma certa dignidade, neste mundo, no qual as contingências da vida me fizeram
morador.
O fato de, durante todo o curso, trabalhar numa biblioteca, me ajudou a percorrer os caminhos da filosofia com algum conforto. Não é exagero falar, mas tudo que o curso me exigia, em termos de livros, encontrava-se ao alcance de minhas mãos. Além do mais, cabia a mim a responsabilidade de fazer as compras dos novos livros. Não vou negar, tenho que confessar tal transgressão ética, vez por outra, entrava para o acervo da biblioteca, um livro novo que, por coincidência, encontrava-se nas listas dos livros que eu deveria estudar. Assim, esse pecado, se o considerarmos como tal, ajudava, por um lado, um aluno pobre a estudar e, por outro, contribuía para a renovação do velho acervo daquela biblioteca secular. Tenho certeza de que São Bento, que sempre gostou dos livros, há de interceder por mim, junto ao Pai, na hora do Juízo Final. Não me faltavam as obras dos autores; em suas mais diversas edições; enciclopédias, de fundamental importância para os estudos, já que naquele tempo, internet não havia; os melhores dicionários, das mais diversas línguas, bem como Dicionários técnicos de filosofia; acrescenta-se a isso, toda uma vasta bibliografia sobre os percursos da história da razão ocidental, seja narrando seus fatos históricos, seja apresentando o espaço cultural no qual ela se forma e se transforma. Se tudo isso já era bom, tinha mais. Os monges beneditinos, sempre foram reconhecidos como homens cuidadosos com a sua formação intelectual. A maioria dos monges falavam mais de uma língua. Um deles, Abade do Mosteiro, Dom Timóteo Amoroso Anastácio – sobre o qual escrevi um artigo, intitulado O Abade e o Porteiro, em cujo texto, de forma mais demorada, narro minha experiência no convívio com ele -, tinha grande domínio sobre as línguas clássicas, a exemplo do latim e do grego. Como estava sempre na biblioteca – era mais um admirador dos livros -, Dom Timóteo, com muita humildade e sabedoria, ajudava-me nas minhas dúvidas. Era uma grande honra ter daquele sábio monge orientando-me na travessia do mar revolto das línguas clássicas.
O tempo passa rápido, quando menos esperamos o nosso dia vai entardecendo. Há dois tempos, o tempo do prazer e o tempo da dor. O primeiro é muito breve, o segundo, faz moradas mais longas. Encontrava-me com a alma dividida, uma certa esquizofrenia existencial. Por um lado, tudo era muito sofrido, queria que tudo chegasse ao seu fim. Que o tempo da dor me fosse abreviado. Frequentar a Faculdade tornou-se um fardo. Precisava concluir aquele curso. Por outro lado, sabia que precisava de mais tempo de estudos, só assim conquistaria uma desejada maturidade conceitual. Tinha que continuar estudando. Lembro-me de que, um pouco mais acima, falei que eu corria atrás do prejuízo, agora era a hora de eu compensar as leituras que não trouxe na alma do tempo não lido. Não somente isso. Terminar o curso naquele momento, era me expor ao olhar das outras pessoas que, sempre mais críticos com o outro do que com elas próprias, começaria a me cobrar: e agora, já concluiu seu curso, o que vai fazer? Será que esse curso não vai lhe servir para nada? Será que só lhe servirá como um verniz intelectual? Devia saber que filosofia não enche barriga? Sem ser muito perverso com o olhar do outro, devemos reconhecer que o nosso fracasso causa-lhe mais prazer que o nosso sucesso. Adiar o final do curso, de certa forma, era adiar esse enfrentamento com a perversa e cruel realidade. A realidade sabe, e como sabe, ser desencantadora de sonhos. Reconheço que vivi intensamente o tempo do prazer, ele me pertencia por inteiro, estava nos limites de minha subjetividade. O tempo da dor, encontrava-se fora dos meus dominios. Ele pertencia à realidade. Entretanto, sabia que não podia declinar-me de seu olhar. Ele olhava-me com o olhar de quem exige que você vista uma roupa, fora de suas medidas, que não lhe cabe por inteiro. Esse desconforto faz a vida ser assustadoramente arriscada. Que bom seria se pudéssemos recolher as roupas do varal, fechar portas e janelas, nos agasalhar confortavelmente e sonhar os nossos sonhos, protegidos pelos nossos delirios subjetivos. Infelizmente não é possível. A objetividade, chamada de realidade, antes do despertar do dia, bate à nossa porta: acorda, levanta, é chegada a hora de fazer mais uma escolha, tomar mais uma decisão em sua vida. O curso acabou. O que fazer agora? Qual caminho deve seguir? Por um ano e meio vivi essa crise. Tinha concluído o curso de filosofia, mas não sabia como fazê-la sustentar-me. Era evidente o meu medo de constatar que, depois de toda essa caminhada, não iria poder contar com a filosofia para sustentar-me nesta vida. Não tendo como sobreviver com a filosofia, ela passaria a ser apenas um nobre hobby, e eu continuaria sobrevivendo com o meu trabalho naquela biblioteca. Não que isso me fosse uma punição da vida. Eu amava os livros. Mas era chegado o momento de continuar a caminhada, tinha que fazer o rito de passagem para uma etapa mais complexa da vida, na qual a maior idade da razão torna-se uma exigência. Encontrava-me novamente diante de uma encruzilhada, entre a realidade e os livros. Qual dos caminhos deveria escolher? Já tinha quase vinte e oito anos. Não era mais um adolescente. A escolha a ser feita teria que ser acompanhada de responsabilidade. Nessa encruzilhada estive por quase dois anos. Não fiquei parado, enquanto esperava, estudava. Foram dois anos de profundos estudos de filosofia. Já que não tinha certeza do que fazer da vida objetiva, aproveitava para viver intensamente o que me dava prazer na vida dos delírios subjetivos. Contudo, sabia que, mais cedo ou mais tarde, teria de objetivar o meu mundo subjetivo. Teria que levar a filosofia para o mundo real e nela habitar. Dizem que não se vive de filosofia. Precisaria provar, para mim mesmo, o contrário dessa tese. Não poderia fracassar na escolha. Se não tivesse êxito na luta contra os meus moinhos de ventos, teria que abandonar o sonho, ceder ao desencantamento da vida, lançar-me num mundo descolorido, sem a companhia da filosofia. Não haveria outra escolha: ou a filosofia ou as sombras. Naquele momento, encontro-me pedindo socorro à filosofia. Lembrei-me de que, tempos atrás, teria me tornado devoto da Deusa Atena. Não seria a hora de recorrer a ela, com mais devoção? Não seria a hora de entregar-me aos seus cuidados e, como um fiel devoto, resignar-me aos seus desígnios? A Fé é tudo. Tenho medo dessa gente de pouca fé. Foi o que fiz. Curvei-me sobre o seu altar, entreguei-me aos seus cuidados. Não demorou muito, fiz concurso para lecionar na Universidade. Fui aprovado. Tornei-me professor. Nesse momento tive a certeza de que a Deusa grega, vendo-me naquela encruzilhada, acolheu-me, indicando-me o seu caminho: o caminho dos livros. Hoje, vendo como o meu espírito se formou ao longo de minha própria história, vem a mim a mesma certeza que teve Sartre ao escrever, em seu livro, As palavras: “Comecei minha vida como hei de acabá-la, sem dúvida: no meio de livros”.
E aqui estou eu, tantos anos depois, certo de que não errei ao escolher a Deusa Atena para guiar os meus passos nessa vida. O resultado da caminhada, indica que ela não me abandonou. Ela disse-me um dia que eu não me arrependeria se escolhesse os livros. Hoje, depois de tantas primaveras percorrendo esse caminho, tenho que reconhecer: foi o melhor caminho que eu poderia ter trilhado. O resultado poderia ter sido melhor? Sem dúvida. Mas, entre o melhor e o possivel, fiz o que as condições existenciais me possibilitaram: o possível. Mil vidas eu tivesse, mil vezes escolheria o mesmo caminho. Se pudesse, novamente retornaria ao mesmo lugar, daria os mesmo passos, sofreria as mesmas dores, faria as mesmas escolhas, como se estivesse num eterno retorno do mesmo. Sim, num eterno retorno do mesmo, do início ao fim, do fim ao início, na companhia dos livros. Assim, tudo começou, assim, tudo terminará.
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