Artigos Joceval
FATOS E LENDAS - Autor: Joceval A. Bitencourt
julho 22, 2018Prof. Dr. Joceval Bitrencourt
Me falha a memória de quantos verões já se apagaram, desde
aquele, quando um amigo, num fim de tarde, sentado à uma mesa, numa barraca da
praia de Itapuã, narrou para mim uma aventura ocorrida com ele. Não posso
negar, fiquei com inveja. Por um momento, desejei ter sido o sujeito daquela
breve história. O tempo passou, mas a narrativa ganhou assento em minha
memória, insistindo em lembrar-me de um desejo - desejado por mim, mas
realizado por outro. Tal desejo tornou-se falta, tal falta sempre volta a me
incomodar. Sem identificar os personagens, vou narrar para vocês o acontecido,
assim, quem sabe, como numa sessão de análise, liberto-me dessa falta,
aparto-me dela para sempre.
A narrativa será feita na primeira pessoa. Assim, fazendo-me
protagonista da história, busco superar essa falta e viver uma história que a
realidade me negou....
Praça Castro Alves, últimos momentos de um carnaval... o dia já
amanhecido, o trio..., Dodô e Osmar..., os últimos acordes eram tocados,
convidando os foliões ao merecido repouso; homens já limpavam a praça, tudo
parecia concluído naquela nublada quarta-feira de cinzas, tão triste que nem
sequer o sol apareceu para cumprimentá-la. Para minha surpresa, uma bela
morena, fixou seu olhar em mim. No primeiro momento, não acreditando em tal
sorte, desviei o meu olhar, dei uma volta sobre o meu próprio corpo, como se
estivesse a procurar o felizardo para quem aquele olhar, de alma pedindo reza,
se dirigia. Não me achava merecedor do olhar daquela “Deusa do Ébano”. Se
existisse um deus do Carnaval – é possível até que exista, não o conheço -,
creditaria a ele essa divina aparição; num segundo momento, protegido por um
manto narcísico, achei que eu poderia ser o alvo daquele olhar... timidamente,
meu olhar foi ao encontro do olhar da morena... “Quando a luz dos olhos meus e
a luz dos olhos teus resolvem se encontrar... ah, que frio que me dá o encontro
desse olhar”... e lá estava ela, com um olhar vestido de desejos, encravados
sobre mim. Como que afetado, como se um raio tivesse transpassado o meu corpo,
fiquei ali, meio perdido, meio zonzo, sem norte, sem direção... E se tudo não
passasse de um delirium tremens, bem
comum no final das festas momescas? Sem saber o que fazer, um pouco embriagado
pela vaidade, paralisei-me... o tempo passou e eu não vi... já não havia mais
as palavras de Dodô, em seus longos e enfadonhos rapapés aos políticos, a rua
já estava higienizada, os sinos da Igreja de São Bento badalavam, convidando os
devotos para a Missa de Cinzas. Naquela praça, naquele amanhecer, só restavam
dois olhares tímidos, fixados um no outro, que resistiam à aceitar que aquele
carnaval chegara ao fim. Assim éramos um baiano e uma mineira, quase sem
palavras, atraídos por uma força magnética, completamente desconhecida à
Física, aproximaram-se, deram-se as mãos e seguiram pela Avenida Sete. Já não
andavam, levitavam. Eu morava perto dali, no Largo 2 de Julho, na rua Areal de
Baixo, um pouco depois do Edifício. Nossa Senhora de Lourdes, mais conhecido
como “tomara que caia”... E lá se foram o pierrô e a colombina, prolongando seu
carnaval. Tocados por aquele olhar da Praça Castro Alves, seguimos, deixando nossos
corpos dançarem, dançarem, dançarem... e flutuarem, como se o tempo estivesse
parado e o amanhã não mais amanhecesse. Oito dias depois, ouvimos o último
acorde daquele carnaval....
Não sei se meu amigo me falou a verdade, ou se foi mais uma daquelas
adoráveis mentiras que ele tanto gostava de contar... Bem, isso pouco importa.
Entre o fato e a lenda, fico com a lenda. Já não sei por onde anda esse meu
amigo, partiu... deixou-me essa história da qual hoje, ao narrar para vocês, espero
ter me libertado dela para sempre...
0 Comments