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DESCARTES : UMA IDEIA DE NATUREZA - Autor: Joceval A. Bitencourt
junho 28, 2018Prof. Dr. Joceval Bitrencourt
Sachez donc, premièrement, que par la Nature je n’entends point
ici quelque Déesse, ou quelque autre sort de puissance imaginaire, mais que je
me sers de ce mot pour signifier la Matière même en tant
que je la considère avec toutes les
qualités que je lui ai attribuées comprises toutes ensemble, et
sous cette condition que Dieu
continue de la conserver en la même façon qu’il l’a créée. Car de cela
seul qu’il continue ainsi de la conserver, il suit de nécessité qu’il doit y
avoir plusieurs changements en ses parties, lesquels ne pouvant, ce me semble,
être proprement attribués à l’action de Dieu, parce qu’elle ne change point, je
les attribue à la Nature ;
et les règles suivant lesquelles se font ces changements, je les nomme les lois
de la Nature.
(Descartes – Le Monde)
O século
XVII é marcado por profundas transformações, período de crises em todos os
campos do saber: na política, na teologia, na filosofia, nas ciências, nas
artes... Crise de ruptura, de mutação, entre o pensamento antigo, que ainda não
se fora completamente, e o pensamento novo, que ainda não se afirmara com a sua
nova verdade. Contudo, é um dos momentos mais ricos na história do pensamento
ocidental. Da superação das velhas verdades, nascem novas verdades, novas
certezas, nasce uma nova ciência, nasce uma nova filosofia, um novo homem,
nasce o mundo moderno. “Uma tal mutação – uma das mais importantes, senão a
mais importante depois da invenção do cosmos pelo
pensamento
grego – foi, decerto, a revolução científica do século XVII[1]”.
Descartes (1596–1650) é, eminentemente, um homem do seu tempo e a ele caberá o
papel de entender a crise do século XVII e, através da sua filosofia,
superá-la. Tarefa árdua, tarefa à qual Descartes dedicará toda a sua vida.
Apesar do próprio Descartes, “humildemente”, reconhecer que nunca desejou nada
além do que reformar suas próprias idéias, a sua missão ultrapassa, e em muito,
esta sua “humildade”. A ele caberá a missão de inventar um novo Deus, um novo
Homem, um novo Cosmo. Para tanto, Descartes rompe com o pensamento tradicional
– Platão, Aristóteles, a Patrística, a Escolástica, a Ciência antiga, na medida
em que esta ainda era herdeira da
filosofia e da velha concepção de mundo, rompe também com o Ceticismo vigente
até o século XVII, a cultura e a tradição – e, ao fazê-lo, está buscando
construir uma nova forma de fazer filosofia, fundada unicamente na ordem
racional do sujeito, tendo na razão o lugar originário do conhecimento, seguro
e certo, sobre todas as coisas. O projeto cartesiano consiste na construção de
um conhecimento que abarque todos os saberes, mas que tenha no sujeito a causa
originária da sua verdade. Essa característica de tomar o homem, o Sujeito,
como instância a partir da qual o conhecimento da verdade vem ao mundo é uma
característica que identifica e diferencia a filosofia de
Descartes de todo o pensamento filosófico que o antecedeu. É a partir deste
“lugar” (do sujeito da verdade) que Descartes anunciará a sua nova filosofia.
Ao anunciar a sua nova filosofia, Descartes anuncia, concomitantemente, o “fim”
do mundo antigo e o nascimento do mundo moderno.
O
processo de superação do paradigma da filosofia antiga (aqui não só entendida a
Metafísica, mas, também, a Física antiga) não se realiza de forma abrupta,
muito pelo contrário, a superação das antigas verdades vai acontecendo de
maneira compassada, mas sucessiva. Três séculos é o tempo de maturação, de
preparação para a superação completa do antigo paradigma por um novo. Ele tem o
seu início (se é que é possível precisar com segurança esse início) com
Copérnico (1473-1543) e atinge a sua plena maturidade com Newton (1642-1727).
Se verdades novas estabelecem-se, quase sempre, sobre o túmulo das antigas, que
verdades são essas que começam a nascer no interior do antigo paradigma,
gerando uma crise de tal ordem que o próprio paradigma já não pode dar conta e,
como que minado por todos os lados, perde a sua força, sua resistência, o seu
poder de representação, deixando nascer no seu interior a sua própria negação e
superação? Muitas são as novas verdades que desestruturam o antigo paradigma,
mas, com certeza, a mais importante delas, e que em si suporta todas as outras,
é a mudança metodológica de ver e
interpretar o mundo. Pouco a pouco, o antigo modelo de observação,
descrição e classificação do real vai sendo substituído pelo método de
investigação fundamentado em uma linguagem matemática na interpretação do real.
O campo onde essa evidência metodológica
se explicita de forma mais elevada é o campo prático das ciências. A Nova
Ciência exige um Novo Método de ver e interpretar o real. Com a conquista da
nova metodologia e a otimização da sua aplicabilidade, a ciência anuncia as
suas primeiras verdades, base de sustentação e orientação para o processo
revolucionário que, se em Copérnico, de forma ainda acanhada, dá os seus
primeiros passos, em Descartes encontrará o seu acabamento epistemológico,
melhor dizendo, metafísico.
Copérnico
rompe com a velha imagem do cosmo (naturalmente ordenado e tendo a terra como o
seu centro) e apresenta, em seu lugar, uma nova ordem do universo, ordem esta
que irá se afirmar como a imagem moderna do cosmo. Copérnico prova, na sua tese
(heliocentrismo), que a terra não é o centro do universo, mas, pelo contrário,
que ela se encontra, como todos os outros planetas, girando, movimentando-se em
torno do Sol. Essa tese vai de encontro a toda a física tradicional, que
defendia a tese que a Terra era o centro do universo e que se encontrava em seu
absoluto repouso, obedecendo à ordem natural do cosmo. A partir de Copérnico,
“a Terra perde o privilégio de ser o centro do universo e passa a percorrer uma
órbita em torno do Sol[2].”
Se o modelo
matemático de interpretação do real já se anuncia, pelo menos enquanto
possibilidade, na teoria de Copérnico, é em Galileu que esse modelo adquire a
sua plena maturidade e se afirma, definitivamente, como o modelo paradigmático
da ciência na interpretação do Universo. A partir de Galileu, temos uma nova
imagem do mundo, completamente diferente da imagem do mundo hierarquizado,
finito, finalista, compreendido e interpretado no interior de uma lógica
puramente dedutiva aristotélico-escolástica. Com Galileu, conhecemos, pela
primeira vez, a imagem do mundo moderno: um mundo aberto, indefinido, infinito,
um mundo desdivinizado, constituído unicamente por uma ordem mecânica, que pode
ser traduzido e interpretado a partir de uma linguagem puramente matemática. “A filosofia encontra-se escrita neste grande
livro que continuamente se abre perante nossos olhos (isto é, o universo), que
não se pode compreender antes de entender a língua e conhecer os caracteres com
os quais está escrito. Ele está escrito em linguagem matemática, os caracteres
são triângulos, circunferências e outras figuras geométricas, sem cujos meios é
impossível entender humanamente as palavras; sem elas nós vagamos perdidos
dentro de um obscuro labirinto”[3].
O próprio Descartes, reconhecendo o valor das Matemáticas, bem como a
extensão da sua aplicabilidade, se surpreende que os antigos pensadores não
tenham percebido o seu verdadeiro alcance e a tenham submetido a um reduzido
campo do saber como o da Mecânica: “Comprazia-me, sobretudo com os matemáticos,
por causa da certeza e da evidência de suas razões; mas não notava ainda seu
verdadeiro emprego, e, pensando que serviam apenas às artes mecânicas,
espantava-me de que, sendo seus fundamentos tão firmes e tão sólidos, não se
tivesse edificado sobre eles nada de mais elevado”[4].
Descartes irá estender o pensamento matemático ao mais alto posto do saber.
Fará desta as bases de sustentação da sua própria Metafísica. Segundo ele, a
Matemática é a Mathesis
Universalis, a ciência Una que
procurava para, a partir dela, decifrar os segredos do universo. Essa
reverência à Matemática fica clara quando lemos nas Regras para a Direção do Espírito:
“Para falar com liberdade, ela – a Matemática – é preferível a qualquer outro
conhecimento transmitido humanamente,
dado que é a fonte de todos os outros”. Assim, a partir de Descartes, a
Matemática torna-se o modelo paradigmático, a partir do qual, a verdade vem ao
mundo.
É para essa
linguagem físico-matemática,
principalmente aquela pensada a partir de Galileu, a sua nova possibilidade de
aplicabilidade e as conquistas já alcançadas, no campo da ciência, por Galileu,
que o olhar de Descartes estará voltado.
O próprio Descartes, em carta dirigida a Mersenne em 22 de julho de
1633, demonstra-se preocupado com as perseguições contra Galileu, e evidencia,
acima de tudo, a importância e a influência das teses de Galileu, na construção
de sua própria obra: “[...]Achava-me eu neste encargo quando recebi vossa
última carta do dia onze deste mês, e queria fazer como os maus pagadores que
soem pedir a seus credores que lhe concedam um pouco de prazo tão logo sentem
se aproximar o vencimento da dívida. De fato eu me propusera vos enviar o meu Mundo
como brinde para estas festas; e, não há ainda quinze dias, eu estava resolvido
deveras a vos remeter ao menos uma parte se a obra toda não pudesse ser
transcrita nesse tempo. Dir-vos-ei, porém, que tendo mandado me informar, estes
dias em Leyde e em Amsterdão, se aí se acharia o sistema do Mundo de Galileu
por me parecer constar que ele fora impresso na Itália no ano passado, me
responderam que era verdade que tinha sido impresso, mas que todos os
exemplares haviam sido queimados em Roma ao mesmo tempo, e o autor condenado a
certa penalidade. Ora, isso me surpreendeu tanto que resolvi quase queimar todos os meus papéis ou, pelo menos, não os
mostrar a ninguém. Pois não posso imaginar que ele, que é italiano e mesmo bem
querido do Papa, segundo me consta, tenha sido considerado criminoso apenas
pelo fato de ter desejado estabelecer o movimento da Terra, o que sei bem haver
sido outrora censurado por alguns cardeais. Mas eu cuidava ter ouvido dizer,
mais tarde, que isso não deixava de ser encenado publicamente, até mesmo em
Roma; e confesso que se isso é falso,
todos os fundamentos da minha filosofia também o são pois se demonstram por
eles, evidentemente. E se acha de tal forma ligada com todas as partes do meu
Tratado, que eu não poderia destacá-lo sem tornar defeituoso todo o resto [...]”[5].
Aqui Descartes se refere ao seu livro, Le Monde - onde já se
encontra assumido como verdade, não só o heliocentrismo de Copérnico e Galileu:
a terra gira em torno do sol, mas também uma interpretação puramente
mecanicista da natureza da matéria. A condenação definitiva de Galileu, em
1633, leva Descartes a renunciar à publicação do Le Monde. Descartes,
por prudência, “vive bem quem vive nas sombras” – “...como não quereria por
nada deste mundo que saísse de mim um discurso onde se encontrasse a menor
palavra que fosse desaprovada pela igreja, preferiria também suprimi-lo a
fazê-lo aparecer estropiado.[6]”;
esta prudência fica mais explicita quando lemos o que diz Descartes em carta
enviada a Mersenne, logo após a condenação de Galileu: “Todas as coisas que
expliquei em meu tratado, incluindo-se a
doutrina do movimento da terra, eram de tal modo interdependente que bastaria
descobrir que uma só é falsa para chegar à conclusão de que todos os argumentos
utilizados são infundados, embora eu saiba que se colocaram todos em prova muito certas e evidentes, por nada
deste mundo gostaria de sustentá-los perante a autoridade da igreja.... desejo
viver em paz”[7].
-, prefere não correr o risco de, também
ele, ver seus livros queimados na praça
de Roma e, ele mesmo, condenado a uma prisão domiciliar ou coisa pior. Em 1637,
em o Discurso
do Método, parte dessa obra será publicada, já com as devidas correções
que não o comprometesse diretamente com o heliocentrismo. Na quinta parte desta
do Discurso, o próprio Descartes enuncia os principais temas que foram
tratados no seu livro Le Monde, e insinua os
motivos que levaram a não torná-lo público: “Mas, dado que procurei explicar as principais num
tratado que certas considerações me impedem de publicar, não poderia dá-las
melhor a conhecer do que dizendo aqui, sumariamente, o que ele contém. Eu
pretendia, antes de escrevê-lo, incluir nele tudo que julgava saber, quanto à
natureza das coisas materiais. Mas, tal como os pintores que, não podendo
apresentar igualmente bem num quadro plano todas as diversas faces de um corpo
sólido, escolhem uma das principais, que colocam à luz, e, sombreando as outras,
só as fazem aparecer tanto quando se possa vê-las ou olhar aquela; assim,
temendo não poder pôr em meu discurso tudo o que tinha no pensamento, tentei apenas expor bem
amplamente o que concebia da luz; depois, no seu ensejo, acrescentar alguma coisa sobre o sol e as estrelas fixas,
porque a luz procede quase toda deles; sobre os céus, porque a transmitem;
sobre os planetas, os cometas e a terra, porque a refletem; e, em particular,
sobre todos os corpos que há sobre a terra, porque são ou coloridos, ou transparentes,
ou luminosos; e enfim sobre o homem, porque é o seu espectador”[8].
Buscando evitar se expor aos inquisidores e ferrenhos defensores da velha
física, podendo, assim, “dizer livremente o que julgava”, Descartes inventa um
novo mundo, para nele instalar a nova física, compreendida a partir de uma
concepção puramente mecânica, onde a matéria se expressa unicamente em forma de
extensão. “ ...resolve-me a deixar todo esse mundo às suas disputas – dos Doutos – e a falar
somente do que aconteceria num novo, se
Deus criasse agora em qualquer parte, nos espaços imaginários, bastante matéria
para compô-lo, e se agitasse diversamente, e sem ordem, as diversas partes
dessa matéria , de modo que compusesse com ela um caos tão confuso quanto os
poetas possam fazer crer, e que, em seguida, não fizesse outra coisa senão
prestar o seu concurso comum à natureza,
e deixá-la agir segundo as leis por ele estabelecidas”[9].
Tal qual o poeta, aqui também Descartes é um fingidor, finge falar de um outro
mundo, finge inventar um outro mundo, quando verdadeiramente é do nosso mundo
que ele está falando. Mas, entretanto, não deixa de ser verdade que ele esteja
falando de um novo mundo, de um novo cosmo, não mais do “cosmo helênico, o
cosmo de Aristóteles e da Idade Média[10]”,
Descartes está a falar de um mundo novo, um mundo bem mais simples que o
antigo, mundo que é só matéria e movimento, um mundo que se deixa traduzir em uma linguagem puramente matemática,
através da qual é possível ao homem decifrar as leis elaboradas por Deus na construção do
universo. “Assim, do desmoronamento das suas primeiras certezas, Descartes
apenas salvará as que não dependam da filosofia: a crença em Deus e na
Matemática[11]”,
duas crenças que serão fundamentais na ordem das razões da filosofia cartesiana. Com a
primeira, submetendo-a a uma nova ordem interpretativa, fundamentará as bases
da ciência moderna, com a segunda, fundará a nova metafísica, a metafísica do
sujeito, à qual subordinará todas as conquistas da nova ciência. Este Mundo,
pensado por Descartes, como um “outro” mundo, não obedece às nossas leis ou às
leis do nosso mundo, obedece sim às leis do seu criador, ou seja, obedece às
leis que Deus se lhe impôs no instante da sua criação. Cabe ao homem, ao físico
mecanicista, elevar-se a Deus, penetrar no seu sistema, colocar-se no seu lugar
para entender e dar conta da ordem lógica a partir da qual o mundo foi criado[12].
Não há nada que possa escapar à inteligência humana, nem mesmo os segredos de
Deus. Segundo Descartes, este mundo é constituído de coisas muito simples, é
constituído unicamente de matéria e movimento “ou melhor – pois a matéria
cartesiana, homogênea e uniforme, é
apenas extensão -, extensão e movimento, ou melhor ainda – pois extensão cartesiana
é apenas geometria -, espaço e movimento”[13].
Na Segunda Meditação, Descartes ilustra, com um belo texto, a análise do pedaço
de cera, onde demonstra que a matéria se constitui unicamente de extensão e
movimento, e que ela, a matéria, se deixa traduzir em uma linguagem puramente
geométrica: “[...] este pedaço de cera
que acaba de ser tirado da colméia: ele não perdeu a sua doçura do mel que
continha, retém ainda algo do odor das flores de que foi recolhido; sua cor,
sua figura, sua grandeza são patentes; é duro, é frio, tocamo-lo e, se nele
batemos, produzirá algum som. Enfim, todas as coisas que podem distintamente
fazer conhecer um corpo encontram-se neste[14].” Segundo Descartes, quando se aproxima um pedaço de cera do fogo, o mesmo
se modifica, transformam-se todos os seus estados anteriores. Pergunta
Descartes: “A mesma (cera) permanece após essas modificações? Cumpre confessar
que permanece: ninguém pode negar[15].
Mas o que permanece da cera não são os mesmos atributos que ele conheceu
através dos sentidos, já que estes foram completamente transformados, o que
permanece da cera é a própria cera”. “Talvez
fosse como penso atualmente, a saber, que a cera não era nem doçura do mel, nem
esse agradável odor das flores, nem essa brancura, nem.....”[16]. Se, de fato, retira-se da cera todas
as coisas que não pertencem à cera, o que permanece da cera? “Certamente nada permanece senão algo de
extenso, flexível e mutável”[17].
Eliminada a possibilidade de através do flexível e do mutável, captado pela via
da imaginação, obter-se um conhecimento verdadeiro sobre a cera, resta a
extensão, e é desta que a matéria é constituída. A inteligibilidade deste
conceito (extensão) só se torna possível quando traduzido em uma linguagem
puramente geométrica. A geometrização da natureza e a garantia dos seus
resultados práticos acentuam no espírito do homem renascentista, inclusive no
de Descartes, a certeza de que a natureza não é representação de nenhuma Deusa
ou “dotada de alguma potência imaginária”, mas simplesmente matéria, cuja
essência se deixa traduzir em uma linguagem puramente matemática. De posse
desse método de decifração do real, o homem assume, sobre a natureza, um poder
nunca antes pensado, um poder de “Senhor e possuidor da natureza”. Agora, tendo
a natureza subordinada a uma ordem puramente racional, pode o homem conhecer as
suas leis, revelar os seus segredos, decifrar a engrenagem que a faz ser o que
é, e, através da técnica, manipulá-la, reproduzí-la, transformá-la em máquina.
O mecanicismo torna-se, no século XVII, uma idéia ou
modelo a qual todos, ou quase todos, cientistas, artistas e, até, filósofos, no
caso, Descartes, tomam como técnica de investigação do real. É possível dizer
que, no que se refere à revolução científica ocorrida no Renascimento, o
mecanicismo se constitui como principio e fundamento regulador desta revolução.
O papel da ciência é servir-se desta técnica, através da qual, essa natureza-máquina, esse homem-máquina devem
ser conhecidos e interpretados. Descartes assume o mecanicismo como fundamento
da sua ciência e, através do Discurso do Método, anuncia ao mundo essa Nova
Ciência. Agora, em lugar do homem postar-se extasiado diante da beleza estética do cosmo, cosmo
este que tanto deslumbrou a alma do Grego
e que faz dizer ao salmista que o céu e a terra clamam a glória do Eterno e louvam o trabalho das suas mãos[18],
Cosmo onde tudo se encontra perfeitamente
ordenado, onde a sabedoria divina se manifesta por toda parte anunciando
ao homem, através da sua obra, o melhor mundo possível, opõe-se a ele, não
enquanto matéria, que também o é, mas enquanto espírito, enquanto pensamento
que pensa essa alteridade desprovida de qualquer representação humana ou
divina, e constituída de leis próprias, que devem ser traduzidas e subordinadas
à “autocracia da razão”. Aqui, neste mundo puramente mecânico, onde tudo tem
que ser, necessariamente, explicado a partir dos conceitos de extensão e de
movimento, a física cartesiana, a qual se subordina a mecânica, torna-se a nova
referência paradigmática na interpretação
do real. Não há mais diferenças entre as naturezas, as substâncias extensas,
todas elas, sem exceção, não passam de máquinas que, através do pensamento, da
substância não extensa, podem ser pensadas e, como conseqüência, pelo menos
enquanto possibilidade, podem também serem fabricadas, reproduzidas. “Eu não reconheço nenhuma diferença entre as máquinas que os artesãos
fazem e os diversos corpos que a natureza por si só compõe, a não ser esta: que
os efeitos das máquinas não dependem de mais nada a não ser da disposição de
certos tubos, ou molas, ou outros instrumentos, que, devendo ter alguma
proporção com as mãos daqueles que os fazem, são sempre tão grandes que as
figuras e movimentos se podem ver, ao passo que os tubos ou molas que causam os
efeitos dos corpos naturais são ordinariamente demasiado pequenos para poderem
ser apercebidos pelos nossos sentidos. E é certo que todas as regras da
Mecânica pertencem à Física, de tal modo que todas as coisas que são
artificiais são com isso naturais. Porque, por exemplo, quando um relógio marca
as horas por meio das rodas de que está feito, isso não lhe é menos natural do
que a uma árvore produzir os seus
frutos. É por isso que, da mesma forma que um relojoeiro, ao ver um relógio que
ele não fez, pode ordinariamente julgar, a partir de algumas das suas partes
que vê, quais são as outras que ele não vê, assim, considerando os efeitos das
partes sensíveis dos corpos naturais, eu tentei conhecer quais devem ser os das
suas partes que são insensíveis”[19]. Para Descartes, é neste mundo, que é na sua essência
mecanismo, extensão, geometria, que Deus instalou o homem, feito à sua imagem,
como o representante de uma outra essência, infinitamente mais digna que a
primeira: o pensamento. A alma serve do corpo como um piloto do seu navio, para
o dirigir, e a bordo da nave do mundo, por si vazio de intenções e finalidades,
o homem é o espírito através do qual o mundo pode servir o plano de Deus[20].
A mecânica, subordinada à física, esta, por sua vez,
subordinada e garantida por Deus, dá a Descartes a certeza de ter encontrado a
verdadeira ciência, a qual estará
subordinado o conhecimento claro e distinto sobre todas as coisas. Tendo aceito
a tese de Galileu de que o Mundo é Uno e, apesar da sua diversidade, regido
pelos mesmos princípios ou mesmas Leis, Descartes acaba de encontrar aquilo que
ele procurava: uma única ciência capaz de dar conta do Mundo Uno pensado por Galileu. Essa nova
ciência, além de ser certa e verdadeira, possibilita, o que tanto Descartes
buscava, a aquisição de um saber prático, que seja “muito útil à vida”, um
saber bem distinto daqueles oferecidos pela tradição e tanto debatidos pelas
Escolas e pelos Doutos que, segundo Descartes, não passava de pura
especulação, desprovido de qualquer
sentido prático para a vida do homem: “...tão logo adquiri algumas noções
gerais relativas à física e, começando a comprová-las em diversas dificuldades
particulares, notei até onde podiam conduzir, e o quanto diferem dos princípios
que foram utilizados até o presente, julguei que não podia mantê-los ocultos, sem
pecar grandemente contra a lei que nos obriga a procurar, no que depende de
nós, o bem geral de todos os homens”[21].
As conquistas da física acentuam no espírito de Descartes a certeza de ter
encontrado um saber que, voltado muito mais para a ação do que para a
contemplação, torna o homem como que
senhor e possuidor da natureza: “elas me fizeram ver que é possível chegar a conhecimentos que sejam muito úteis à vida,
e que, em vez dessa filosofia especulativa que se ensina nas escolas, se pode
encontrar uma outra prática, pela qual, conhecendo a força e as ações do
fogo,da água, do ar, dos astros e de todos os outros corpos que nos cercam, tão
distintamente como conhecemos os diversos misteres de nossos artífices,
poderíamos empregá-los da mesma maneira em todos os usos para os quais são
próprios, e assim nos tornar como que senhores e possuidores da natureza”[22].
Até a
condenação de Galileu, parece ser esse o único objetivo de Descartes: fundamentar teoricamente a nova
ciência que incorporava as conquistas de Copérnico e Galileu e, a partir dela,
tornar o homem “senhor e possuidor da natureza”. Objetivo buscado, objetivo
alcançado. Basta, é o suficiente. O próprio Descartes, no início do Discurso
do Método, parece não estar preocupado em fundar nenhuma nova
filosofia, ou mesmo tomar partido nas disputas metafísicas, tão freqüentes e
perigosas, que alimentavam os espíritos Doutos do século XVII, e ter-se bastado ou se mantido no plano da própria
filosofia vulgar: “todavia, esses nove
anos escorreram-se antes que eu tivesse tomado qualquer partido, com respeito
às dificuldades que costumam ser disputadas entre os doutos, ou começado a
procurar os fundamentos de alguma
Filosofia mais certa do que a vulgar”[23].
Mas Descartes não poderá manter-se por
muito tempo ancorado às conquistas da Nova Ciência, as próprias condições
históricas exigirão que ele vá além do porto seguro da sua ciência prática e se
lance no mar revolto da metafísica. É
preciso legitimar a Nova Ciência, pois ela, por si só, não encontra essa
legitimação. É preciso, e é isso que fará Descartes, encontrar bases metafísicas, seguras e certas, para
fundamentar e legitimar a Nova Ciência. O que está em jogo aqui é a própria
sobrevivência do heliocentrismo. Essa será a nova missão de Descartes: através
da metafísica, salvar e legitimar o heliocentrismo. Se no Discurso do
Método, Descartes já insinua essa Nova Metafísica, é nas Meditações
e, mais tarde, nos Princípios da Filosofia, que, de forma madura
e acabada, Descartes anuncia ao mundo os fundamentos metafísicos da Nova
Ciência: a Metafísica do Sujeito. Se a preocupação de Descartes é
legitimar, através da metafísica, a Nova Ciência, nada mais natural do que
tentar convencer, aos Doutos e a todos aqueles que se opunham a qualquer
argumento ou filosofia que não se fundamentasse na Velha Ciência – ciência
aristotélica – a condenação de Galileu, em 1633, já anunciava os riscos para
quem voltasse a defender as mesmas teses -, sobre a validade da sua filosofia e, acima de
tudo, que esta não “colocava” em riscos
os alicerces da fé Cristã. Quando da apresentação da sua obra aos Doutores
da Sagrada Faculdade de Teologia de Paris, na esperança de que destes venha
obter aprovação para sua metafísica, diz Descartes: “A razão que me leva a apresentar-vos esta
obra é tão justa – e, quando conhecerdes seu desígnio, estou certo de que
tereis o também justo desígnio de tomá-la sob vossa proteção – que penso nada
melhor poder fazer, para torná-la de algum modo recomendável a vossos olhos, do
que dizer-vos, em poucas palavras, o que me propus nela. Sempre estimei que
estas duas questões, de Deus e da alma, eram as principais entre as que
devem ser demonstradas mais pelas razões da Filosofia que da Teologia:
pois, embora nos seja suficiente, a nós outros que somos fiéis, acreditar pela
fé que há um Deus e que a alma humana não morre com o corpo, certamente não
parece possível poder jamais persuadir os infiéis de religião alguma, nem quase
mesmo de qualquer virtude moral, se primeiramente não se lhe provarem essas duas
coisas pela razão natural[24].”
Percebe-se que essa carta de apresentação das Meditações traz uma intenção subliminar de Descartes, que é a de obter a aprovação dos Doutores
da Sorbonne para sua obra, o que justifica uma certa moderação na
apresentação das suas teses, como se não quisesse escandalizar a academia com
suas idéias revolucionárias, tendo-a contra ele[25].
A sua pretensão é muito maior, bem maior do que os seus leitores pudessem supor
ou mesmo suportar. Ele pretende construir uma nova ciência, tendo como modelo o
rigor da matemática, que dê conta da totalidade do conhecimento, uma ciência
cuja abrangência é a própria
possibilidade do saber. Essa Ciência se chama Metafísica. É ela que, segundo
Descartes, todas as outras ciências terão que ter como fundamento, como causa
primeira, através da qual será construída “uma ordem única do saber”. Essa
intenção de fazer da metafísica a base para a fundamentação do saber, fica
bastante clara quando Descartes nos apresenta a imagem da sua famosa árvore do
conhecimento: “A filosofia toda é como uma árvore, cujas raízes são a
Metafísica, cujo tronco é a Física e cujos galhos que saem desse tronco são
todas as outras ciências...[26]”.
Garantido
pelo principio gerenciador das idéias Claras e Distintas[27],
Descartes buscará, nas Meditações, provar a existência do Homem, de Deus
e do Mundo. Três verdades, quando conquistadas e estabelecidas a sua
ordem de dependências, garantirá os fundamentos metafísicos da nova Ciência. Este é o principal objetivo
do autor do Método. Descartes inicia a sua Odisséia fazendo uma
suspensão de juízo de todos os conhecimentos herdados da tradição – filosofia ,
ciência e teologia - , por não encontrar nestes nenhuma base sólida que lhe
possibilitasse conhecer sequer, de forma clara e distinta, uma única verdade.
Passa então a duvidar de tudo, da Sua própria existência, da existência de Deus
e da existência do Mundo. Instalado na dúvida, fará desta um Método.
Diferentemente dos Céticos ou do ceticismo que renasce no entardecer da Idade
Média e que tem em Agrippa (1485-1535), Sanchez (1523-1601), Charron (1541-1603) e Montaigne (1533-1592) , os seus mais ilustres
representantes, que duvidavam por duvidar. A
dúvida cartesiana é Método, é caminho que o conduz ao conhecimento da
verdade. É da superação da dúvida que nasce a primeira verdade cartesiana e,
como conseqüência dela, todas as outras verdades possíveis. É preciso duvidar
de tudo até que seja possível encontrar algo – se é que existe – tão verdadeiro
que resista à própria possibilidade da dúvida, que seja uma verdade
indubitável. “A dúvida é a pedra de toque da verdade, o ácido que
dissolve os erros. Por isso ser-nos-á necessário torná-la tão forte quanto
possível e duvidar de tudo sempre que possível. Só então teremos a certeza de
apenas conservar o ouro da pura verdade”[28].
Essa dúvida, que agora é Método, divide-se “em duas grandes partes: a dúvida
natural e a dúvida metafísica” [29].
Na primeira parte (enquanto dúvida natural), a dúvida volta-se para negar o
caráter sensível do fundamento de qualquer conhecimento verdadeiro; na segunda
parte (enquanto dúvida metafísica), a dúvida se eleva até aos conhecimentos que
estão para lá das representações sensíveis, os conhecimentos do intelecto, como
é o caso dos conhecimentos matemáticos que, a princípio, Descartes os toma como
os mais verdadeiros e confiáveis. A dúvida alcança todas as suas representações
(é isso que Descartes faz na primeira Meditação), seja do sensível ou do
intelecto, torna-se uma dúvida Universal. Instalado numa dúvida Universal, no
fofo travesseiro das incertezas e, sequer sobre uma simples operação
matemática, do tipo 2 + 3 (tendo descartado a possibilidade de que, existindo
um Deus, sendo este bom, perfeito e onipotente, ele possa lhe enganar, já que o
engano é uma imperfeição e, por uma impossibilidade lógica, a imperfeição não
pode ser parte da natureza da perfeição, Descartes levanta a tese (como recurso
metodológico para elevar a dúvida ao último grau, torná-la hiperbólica,
exagerada), da possibilidade da existência de um Gênio Maligno, este sim, com
poder para fazê-lo, se assim o quisesse, enganar-se sempre, mesmo sobre
verdades, a principio tão claras e evidentes, como a originária de uma simples
operação matemática do tipo 3 + 2), pode ter alguma garantia de verdade. Ao fim
dessa sua primeira caminhada, temos a impressão de encontrarmos Descartes
desiludido (“sou obrigado a confessar”) com os resultados obtidos. Nada de
verdadeiro sobreviveu, a dúvida parece ser a vencedora deste embate. Vitória do
ceticismo: não é possível um conhecimento verdadeiramente indubitável sobre
nada. “Suponho, portanto, que todas as
coisas que vejo são falsas; persuado-me de que nada jamais existiu de tudo
quanto minha memória referta de mentiras me apresenta; penso não possuir
nenhum sentido; creio que o corpo, a figura, a extensão, o movimento e o lugar
são apenas ficções de meu espírito. O que poderá, pois, ser verdadeiro? Talvez
nenhuma outra coisa a não ser que nada há no mundo de certo[30].”
Erraríamos se tomássemos essa tese como conclusiva; ela é, pelo contrário, a
primeira Vitória da Razão. Ela acaba de provar que as bases sobre as quais
estavam assentados todos os fundamentos do saber não são sólidas o suficiente
para suportar o crivo da dúvida. É preciso
reiniciar a caminhada do saber, agora por outros caminhos, em busca da conquista de uma verdade que seja
indubitável, cujo estatuto de verdade nem mesmo um Gênio enganador, se assim o
quisesse, seria capaz de colocá-la em dúvida. Na busca desse “ponto fixo e seguro”, que
lhe garanta, a partir dele, fundamentar toda a ordem do saber, ou seja, a sua
própria metafísica, Descartes passa a questionar, não mais a dúvida em si, mas
o próprio sujeito que duvida, para saber se, também ele, enquanto sujeito que
duvida, sucumbe à dúvida.“Mas eu me persuadi também de que nada existia no
mundo, que não havia nenhum céu, nenhuma terra, espíritos alguns, nem corpos
alguns; não me persuadi também, portanto, de que eu não existia? Certamente
não, eu existia sem dúvida, se é que eu me persuadi, ou, apenas, pensei alguma
coisa. Mas há algum, não sei qual, enganador mui poderoso e mui ardiloso que
emprega toda a sua indústria em enganar-me sempre. Não há, pois, dúvida alguma
de que sou, se ele me engana; e, por mais que me engane, não poderá jamais
fazer com que eu nada seja, enquanto eu pensar ser alguma coisa. De sorte que,
após ter pensado bastaste nisto e de ter examinado cuidadosamente todas as
coisas, cumpre enfim concluir e ter por constante que esta proposição, eu sou, eu
existo, é necessariamente verdadeira,
todas às vezes que eu a anuncio ou que eu a concebo em meu espírito[31]”. Descartes acaba de encontrar uma verdade sobre a qual
não é possível qualquer dúvida, uma verdade que se afirma com um conteúdo de
verdade tão resistente, tão indubitável que, mesmo que ele se enganasse, ou
mesmo que um gênio enganador o enganasse
ou desejasse enganá-lo, mesmo assim essa verdade persistiria,
sobreviveria à dúvida. Essa verdade, “eu
sou, eu existo”, é a condição da própria dúvida, ou seja, a dúvida só
existe enquanto existe um sujeito que a exerce; não posso duvidar, por uma
impossibilidade lógica, de que existe um sujeito que duvida, quando este, de
fato, está exercitando a dúvida. A prova da existência do sujeito está na
existência da própria dúvida. O pensamento afirma a identidade existencial do
sujeito que duvida. A existência da dúvida, que é uma modalidade do pensamento,
é a prova cabal da existência do sujeito que a exerce. O sujeito que duvida
existe, caso não existisse, sequer a dúvida seria possível. “O método revela-se
eficaz. O exercício da dúvida faz surgir uma verdade indubitável. Esta primeira
certeza apresenta-se ao mesmo tempo como uma excepção à dúvida universal e como
sua condição. É uma excepção à dúvida que se afirma tanto mais quanto mais
duvido, porque ela é uma descoberta da própria condição do ato da dúvida..
Assim, a dúvida deixa subsistir fora dela, no campo onde se exerce, a afirmação
da existência do sujeito, contra a qual ela se dirige. Atua sobre todos os
objetos do conhecimento, mas não pode atuar sobre a existência do sujeito, sob
pena de se negar a si própria e desaparecer, como vemos em alguns céticos. O
exercício mais acurado da dúvida revela-me o caráter absolutamente indubitável
da afirmação Eu sou, eu existo...”[32].
Mas Descartes ainda não está inteiramente satisfeito com essa primeira verdade,
é preciso identificar a natureza desse “eu”, saber quem “sou”.
Para responder a essas questões, Descartes investiga os atributos da alma,
buscando identificar qual deles pertence verdadeiramente ao sujeito. Depois de
excluir o corpo e o sentir, pois já tinha admitido que não tinha um corpo, e
sem o corpo, o próprio sentir seria impossível, resta a Descartes o pensar:
“... e verifico aqui que o pensamento é um atributo que me pertence; só ele não
pode ser separado de mim. Eu sou, eu existo: isto é certo, mas
por quanto tempo? A saber, por todo o tempo em que eu penso”[33].
Garantido por essa primeira descoberta, pode Descartes afirmar: “Nada admito
agora que não seja necessariamente verdadeiro: nada sou, pois, falando precisamente, senão uma coisa que pensa, isto é, um espírito, um entendimento ou
uma razão, que são termos cuja a significação me era anteriormente
desconhecida”[34].
Mas, ainda pergunta Descartes: “Que é uma coisa que pensa? É uma coisa que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer,
que não quer, que imagina também e que sente[35].”
O Cogito
torna-se, assim, a primeira verdade, a partir da qual tudo que antes foi
excluído (imaginar, sentir, querer...), por não pertencer à natureza ou à
essência do pensar e, por isso mesmo, por não garantir nenhum conhecimento
seguro e verdadeiro, agora retorna, é reintegrado ao pensar, garantido pela
indubitabilidade do Cogito, primeira verdade do sujeito e fundamento epistemológico
para todas as outras verdades possíveis. Todas as representações possíveis
terão agora de derivar do Cogito e terão nele, e só nele, a
garantia de uma fundamentação verdadeira.
Na análise
do pedaço de cera, feita por Descartes na Segunda Meditação, e por nós, um
pouco acima, ele provou que a matéria é constituída de pura extensão, e esta,
por sua vez, garantida por uma ordem puramente racional. A essência dessa
racionalidade, deste Cogito é o próprio pensamento, nada,
absolutamente nada, fora dele, pode determinar a sua ordem existencial. Todos
os outros conhecimentos, se é que eles existem, coisa que ainda não o sabemos,
devem ser derivados deste, e este deve preceder a todos os outros. A
indubitabilidade do Cogito, já garante aquilo que Descartes buscava
quando deu o salto da ciência para a metafísica: um fundamento metafísico para
a Nova Ciência. Só o pensamento, e só ele, poderá fundar a verdadeira ciência. Só através do
pensamento pode-se conhecer verdadeiramente o real, fora dele, não é possível
um conhecimento verdadeiro sobre
absolutamente nada. Logo, é através do pensamento que se pode obter as “idéias
claras e distintas” e, com elas, estabelecer os fundamentos verdadeiros das
ciências. Conquistada essa primeira verdade metafísica, chega a hora de buscar
a conquista da segunda verdade metafísica: a existência de Deus. Lembremos a
ordem da razão, isto é muito importante, primeiro Descartes prova a existência
do Sujeito pensante, para, só depois, num segundo momento, buscar provas para a
possibilidade ou não da existência de Deus. Na ordem da Razão, o Eu antecede a
Deus. Logo, se é que Deus existe, ainda não o sabemos, é a razão natural que
terá que provar. É o Eu pensante, no limite do seu pensamento, que buscará
provar a segunda verdade da metafísica cartesiana: a existência de Deus.
Até agora
Descartes tem certeza da sua própria existência, do seu próprio Eu, que se
afirma enquanto Ser pensante; o que é preciso, então, é analisar o conteúdo
deste pensamento, analisar as idéias que o constituem para saber se existe alguma
coisa no mundo, para além desse Eu pensante. Em busca da prova da existência de
Deus – três são as provas da existência de Deus, assim classificadas: prova a
priori: feita a partir da análise da idéia de um ser perfeito; segunda: prova a
posteriori: busca analisar as origens
das nossas idéias – prova que desenvolveremos agora -; terceira: a
posteriori: a partir da contingência do espírito –, Descartes elabora uma
complexa teoria das idéias, em que, a partir de uma investigação de todas as
idéias, irá identificar as suas causas originárias, para saber se são todas
elas derivadas do seu pensamento, ou se existe alguma que, estando no seu
espírito, dele independa como causa originária. Depois de analisar todas as
idéias – análise complexa, feita na Terceira Meditação, mas que
aqui não a desenvolveremos - Descartes
chega a seguinte conclusão:“Portanto,
resta tão somente a idéia de Deus, na qual é preciso considerar se há algo que
não possa ter provido de mim mesmo. Pelo nome de Deus entendo uma substância infinita,
eterna, imutável, independente, onisciente, onipotente e pela qual eu próprio e
todas as coisas que são (se é verdade que há coisas que existem) foram criadas
e produzidas. Ora essas vantagens são tão grandes e tão eminentes que, quanto
mais atentamente as considero, menos me persuado de que essa idéia possa tirar
sua origem de mim tão-somente. E, por conseguinte, é preciso necessariamente
concluir, de tudo o que foi dito antes, que Deus existe; pois, ainda que a
idéia da substância esteja em mim, pelo próprio fato de ser eu uma substância,
eu não teria, todavia, a idéia de uma substância infinita, eu que sou um ser
finito, se ela não tivesse sido colocada em mim por alguma substância que fosse
verdadeiramente infinita”[36]. O
eu, que é constituído de uma realidade formal finita, não pode ser a causa
originária da idéia de Deus, que é constituída de uma realidade objetiva
infinita. Isto porque, pelo princípio de causalidade, uma idéia superior não
pode ser originária de uma idéia inferior, ou seja, o efeito não pode conter
mais conteúdo do que a sua causa originária. “Pode haver mais realidade na
causa da idéia do que na própria idéia; mas não pode haver menos”[37].
Por isso, pode Descartes concluir que a causa da idéia de Deus só pode ser o
próprio Deus. Assim Descartes demonstra que Deus existe e que ele é a
causa da idéia de perfeição que existe nele. Descartes acaba de
conquistar a sua segunda certeza: Deus
existe[38]:
“...pelo simples fato de que eu existo e de que a idéia de um ser soberanamente
perfeito, isto é, Deus, é em mim, a existência de Deus está mui evidentemente
demonstrada”[39].
A idéia que ele tem em si de Deus é absolutamente verdadeira, dela está
excluída qualquer possibilidade de dúvida, ela é clara, distinta e indubitável.
A sua existência é a prova cabal da existência de Deus. O seu pensamento
afirmou a verdade da sua própria existência, agora, garantido pela verdade da
sua própria existência, conquista a sua segunda verdade: a existência de Deus. Eu tenho uma idéia clara e distinta de Deus,
logo Deus existe necessariamente. “Deus existe porque eu existo, eu
tenho uma idéia de Deus” [40].
“Deus é o primeiro ser cuja existência
reconheço, depois da minha” [41].
O seu pensamento implica a sua existência. Este mesmo pensamento implica a
existência de Deus. Logo, distintamente de toda a filosofia que o antecedeu, em Descartes Deus é
uma conquista da razão. É racionalmente que ele chega à idéia clara e
distinta da existência de Deus.
Esta
antecedência do Eu pensante em relação a Deus, dá-se unicamente
na ordem da Razão, quando estivermos falando da ordem do Ser,
veremos que as teses se invertem e será Deus que antecederá ao Eu
pensante, garantindo-lhe, não só a sua existência, mas também todas as suas
verdades. Tendo provado que a idéia de Deus é verdadeira, clara e distinta,
quer Descartes saber agora qual a verdadeira origem da idéia de Deus, de que
forma essa idéia foi adquirida pelo seu espírito: “Resta-me apenas examinar de
que maneira adquiri esta idéia”[42].
Ela não pode ser derivada da realidade
externa e adquirida através dos seus sentidos; ela não pode ter a
sua origem no seu espírito, até porque, sobre essa idéia, que é perfeita,
nenhuma propriedade ele pode acrescentar ou retirar por sua própria vontade.
“E, por conseguinte, não resta outra coisa a dizer senão que, como a idéia de
mim mesmo, ela nasceu e foi produzida comigo desde o momento em que fui criado” [43].
Essa idéia, idéia de Deus, não podendo ser produzida pelo espírito, nem
adquirida através dos sentidos, como já vimos, só pode ter origem no próprio
Deus que, por sua vez, impõe ao espírito
desde o seu nascimento. Ela é uma idéia Inata. A idéia Inata é como uma marca
de Deus impressa na alma da sua criatura. Através dessa idéia o sujeito tem em
si a idéia do completo, infinito, perfeito.... Esse Deus, em sua infinita
perfeição, não pode nos enganar, não pode ser a causa dos nossos erros, pois “é
bastante evidente que ele não pode ser embusteiro, posto que a luz natural nos
ensina que o embuste depende necessariamente
de alguma carência”[44].
Eis uma conquista fundamental da metafísica cartesiana: Deus existe, ele não
é enganador. Garantido por essa verdade, clara e distinta, que se impõe
como “ponto fixo” e seguro que procurava,
agora Descartes pode erguer toda a sua filosofia sobre rochas firmes. As
verdades de todas as representações, que estão para lá do Eu, estarão
garantidas pela verdade da idéia de Deus que existe nele. O conhecimento que
ele tem de Deus nele, garante todo o seu conhecimento sobre o universo.
Mas, se
Deus não nos engana, qual é a origem dos nossos erros? O erro, segundo
Descartes, é uma carência, não de Deus que, por suas própria natureza, está excluído desta carência, mas
da própria natureza humana, que traz, em si, pelo seu próprio caráter de
imperfeição e finitude, “uma certa idéia negativa do nada”[45].
O erro “testemunha uma imperfeição no meu espírito”[46].
A causa do erro se encontra na ordem constitutiva de dois conceitos que existem
no espírito: o entendimento e a vontade. Separadamente, nem o entendimento, nem a vontade são causas
dos erros. Ocorre o erro porque “mais
ampla que o entendimento, a vontade exerce-se fora dos limites do conhecimento
claro e distinto”[47].
Assim, Descartes pergunta e responde: “Donde nascem, pois os meus erros? A
saber, somente de que, sendo a vontade muito mais ampla e extensa que o
entendimento, eu não a contenho nos mesmos limites, mas estendo-a também às
coisas que não entendo; das quais, sendo a vontade por si indiferente, ela se
perde muito facilmente e escolhe o mal pelo bem ou o falso pelo verdadeiro. O
que faz com que eu me engane e peque”[48].
A razão deve se restringir a tomar como verdade só o que ela concebe de forma
clara e distinta. A vontade deve estender-se unicamente aos limites do
entendimento. Toda vez que assim se exerce, ela está fazendo bom uso do livre
arbítrio e caminhando pelo caminho da verdade, excluindo a possibilidade do
erro. O erro se afirma quando se nega ou se afirma um juízo sobre o qual não se
tem clareza e evidência. Com isso, Descartes quer dizer que, mesmo quando ele
exerce o livre arbítrio para suspender o juízo sobre as coisas de que não tem
absolutamente certeza, age mais corretamente do que quando, diante da
imprecisão de um juízo, a sua vontade afirma-o ou nega-o. Como vimos, até
agora, todo juízo claro e evidente é indubitável e verdadeiro. Logo, sobre
esses juízos está excluída a possibilidade do erro. Erro é deixar a vontade,
que é ilimitada, conduzir o entendimento que, por sua natureza, é limitado e
finito. Entretanto, e isto é muito importante, na sua finitude e dentro dos
limites das suas possibilidades, o homem pode conduzir, livremente, o seu
espírito na busca da verdade, desde que faça
um uso correto da razão, exercendo-a no limite dos juízos claros e
distintos. “Pois não é suficiente ter o espírito bom, o principal é aplicá-lo
bem”[49].
A liberdade é o reto uso da razão. O erro é o resultado da liberdade no limite
da racionalidade. Como conseqüência, torna-se o homem o único responsável por
cometê-lo ou evitá-lo. “O homem é o ser, através do qual a verdade aparece no
mundo”[50].
Algumas
verdades já se apresentam, de forma clara e distinta, ao pensamento de
Descartes, quais sejam: a Sua própria existência; a existência de Deus; a
impossibilidade de que Deus seja um embusteiro; e, acima de tudo, a verdade que
fundamenta e garante todas as outras verdades possíveis: Deus garante todas as
suas representações claras e distintas. É preciso, agora, erguer, sobre essas
verdades, todas as outras verdades possíveis, ou seja, fundamentar o
conhecimento do mundo material, a partir das bases metafísicas já conquistadas
pela razão no seu livre exercício. É a partir da conquista dessas verdades, que
Descartes poderá alcançar, de forma plena e definitiva, o objetivo que o levou
da ciência para a filosofia: fundar uma nova Metafísica que garanta as
conquistas de Copérnico, de Galileu e dele próprio, que garanta os fundamentos
epistemológicos da Nova Ciência.
Na
análise das representações materiais, Descartes inicia analisando, não as
coisas materiais em si mesmas, mas as essências ou idéias das quais esse mundo
material é constituído. Antes de saber se, de fato, existem coisas fora do
sujeito e se são verdadeiras, é preciso saber se são realmente verdadeiras as
essências que as constituem. Trata-se, agora, de examinar se as essências das
coisas materiais, que são, fundamentalmente, as idéias matemáticas, que existem
no espírito são tão verdadeiras como as verdades claras e distintas já
conquistadas: a existência do seu Eu e a existência de Deus.Quando
analisa as essências, ele percebe que não só os entes matemáticos (números,
figuras, movimentos etc), como também as suas propriedades essenciais estão
presentes em seu espírito e se afirmam de tal forma que parecem independer do
seu próprio espírito. Essas idéias matemáticas não são derivadas dos seus
sentidos, não são resultado do fingimento do seu espírito; ele não tem nenhuma
garantia de que elas possam existir fora do seu pensamento, entretanto, ele
está certo de que existem em seu
espírito, que representam algo e que são constituídas de uma natureza
verdadeira e imutável. Essas essências ou idéias matemáticas são imutáveis e
eternas como, por exemplo, a essência desta figura que é o triângulo (e de suas
propriedades) “que eu não inventei absolutamente e que não depende de maneira
alguma de meu espírito”[51].
Já no início das Meditações,
Descartes afirmava que, de todos os seus conhecimentos, eram os da matemática e
os da geometria os que se apresentavam ao entendimento de forma mais clara e
mais evidente. Mas ali, ainda estava
presente a hipótese da existência de um Deus enganador, o que comprometia essas
verdades. Eliminada aquela hipótese, as verdades matemáticas podem agora se
afirmar como evidentes. É em Deus, que
não é enganador, que essas idéias encontram não só o seu conteúdo de verdade
como, também, o estatuto da sua própria existência. Tendo demonstrado que as
idéias claras e distintas são absolutamente verdadeiras e que as matemáticas
são constituídas dessas idéias, Descartes busca agora, regido pelo principio de
clareza e distinção, regra, até agora, gerenciadora de todas as verdades
conquistadas, construir a sua última
prova, prova demonstrativa, da existência de Deus. A partir dos conceitos de
essência e existência, Descartes vai demonstrar como esses dois conceitos se
relacionam com as idéias das essências
matemáticas e com a idéia de Deus.Tanto a idéia de Deus quanto as idéias das
matemáticas, essência e existência, não podem ser pensadas
separadamente. De certo modo, esses dois conceitos constituem uma unidade
necessária quando se pensa as idéias matemáticas, da mesma forma como quando se
pensa a idéia de Deus. Mas existe uma
diferença entre essas duas situações. O fato de se pensar essência e existência
de alguma representação da matemática ou da geometria, ou de qualquer outra
coisa, não implica que ela exista para além do próprio pensamento. Assim como
se pensa a essência do triângulo com seus ângulos, pensar uma montanha
juntamente com um vale não implica que existam necessariamente montanhas e vales,
mas implica que, existindo ou não existindo, montanhas e vales, “não podem, de
maneira alguma, ser separados um do outro”[52].
O mesmo não acontece quando o pensamento pensa Deus. Segundo Descartes, não
é possível conceber
Deus sem existência: “..do
simples fato de eu não poder conceber Deus sem existência, segue-se que a
existência lhe é inseparável, e, portanto, que existe verdadeiramente”[53].
Não é o pensamento que concebe a existência de Deus, mas é Deus que determina
que o pensamento pense assim: “não está em minha liberdade conceber um Deus sem
existência (isto é, um ser soberanamente perfeito sem uma soberana perfeição),
como me é dado a liberdade de imaginar um cavalo sem asas ou com asas”[54]. Como conseqüência, está fora do alcance do espírito
ser o autor da idéia de Deus, já que este não pode conceber uma única idéia
cuja a essência e a existência “pertence com necessidade”, só Deus tem esse
poder. Assim, garantido por essa idéia de Deus – terceira prova, demonstrada a
partir do conceito de existência necessária -
Descartes faz decorrer a implicação necessária de todas as outras
verdades conquistadas pelo seu espírito – na ordem do Ser, Deus antecede ao
pensamento e o possibilita. É a partir desta nova conquista metafísica que
Descartes irá fundamentar e justificar todos os ramos do saber, inclusive o
valor de verdade da Nova Ciência.“... assim, reconheço muito claramente que a certeza e a verdade de toda ciência
depende do tão-só conhecimento do
verdadeiro Deus: de sorte que, antes que eu o conhecesse, não podia saber
perfeitamente nenhuma outra coisa. E, agora que o conheço, tenho o meio de
adquirir uma ciência perfeita no tocante a uma infinidade de coisas, não
somente das que existem nele, mas também das que pertencem à natureza corpórea, na medida em
que ela pode servir de objeto às demonstrações dos geômetras, os quais não se
preocupam de modo algum com a sua existência”[55].
Lembremos que, ao fazer a análise do pedaço de cera, na Segunda Meditação, Descartes estabeleceu que a extensão é a
essência da matéria e que consiste no único conhecimento claro e distinto que
temos das “substâncias corpóreas”[56].
Vimos que as essências matemáticas são todas elas claras e distintas, logo, são
verdadeiras; sabemos, também, que o conceito de extensão, que faz parte das
essências da matemática, é claro e distinto, logo, verdadeiro. Como
conseqüência, podemos inferir que, sendo a extensão a essência das
representações materiais, essas representações são verdadeiras, pelo menos
quanto às suas essências, ou seja, enquanto representações matemáticas.
Entretanto, também sabemos que a verdade das essências matemáticas não implica
necessariamente que elas existam, enquanto representações materiais, fora do
pensamento: “...a matemática não comporta nenhuma afirmação sobre a existência
fora do pensamento de coisas numeráveis
e extensas. A preocupação da existência é-lhe estranha”[57].
Se o conhecimento de Deus implica necessariamente a sua existência, o
conhecimento das essências matemáticas não implica nessa mesma necessidade, só
implica uma possibilidade. “Na medida em que a essência do mundo material é uma
realidade, a existência das coisas passa a ser pelo menos uma possibilidade”[58].
Diferentemente da filosofia que o antecedeu, que fundamentava, a partir da existência,
o conhecimento das essências, em Descartes, pelo contrário, o conhecimento das
essências precede o da existência, e esta, caso seja verdadeira, encontrará sua
ordem de verdade nas essências que a ela antecedem. Essas essências estão numa
ordem de razão, ou seja, é a razão, única fonte do conhecimento da essência,
que, no seu livre exercício, irá estabelecer a ordem e a verdade das
substâncias extensas. Mas essa possibilidade da existência das substâncias
extensas, ou seja, do mundo material, garantida pelas verdades das essências
matemáticas a elas correspondentes, não é ainda suficiente para fundamentar um
conhecimento seguro e certo sobre as coisas materiais que possam existir fora
das nossas representações de essências. É preciso tornar o conhecimento do
mundo material, a existência dos corpos fora do eu, tão verdadeiro (se é que é possível) quanto o conhecimento das
essências a eles correspondentes.
Na análise
das essências matemáticas, Descartes
obteve, através das idéias claras e distintas, um conhecimento possível
da existências das substâncias extensas; com a análise da imaginação –
análise feita na Sexta Meditação -, ele atinge um ganho maior, isto é,
um conhecimento provável da existência das substâncias extensas. Assim,
Descartes passa do plano da possível (que poder ser), para o da provável (que
apresenta possibilidade de acontecer) existências de substâncias materiais. Não
satisfeito com o provável, obtido através da análise da imaginação,
Descartes passa a analisar, não mais a imaginação, mas o conteúdo sobre a qual
esta se constitui, ou seja, as próprias representações sensíveis. Livre da
dúvida e garantido pela veracidade divina - “... agora que começo a melhor conhecer-me a mim mesmo e a
descobrir mais claramente o autor de minha origem, não
penso, na verdade, que deva temerariamente admitir todas as coisas que
os sentidos parecem ensinar-nos, mas não penso tampouco que deva colocar
em dúvida todas em geral[59]” -, Descartes
retorna aos sentidos para saber se, através destes, é possível obter uma
certeza maior que lhe confirme e garanta a existência de substâncias extensas.
Ao analisar as representações sensíveis, análise feita na Sexta Meditação,
Descartes estabelece a distinção e independência absoluta entre a alma e o
corpo, ou seja, entre a res cogitans e a res extensa: “E,
portanto, pelo próprio fato de que conheço com certeza que existo, e que, no
entanto, noto que não pertence necessariamente nenhuma outra coisa à minha
essência, a não ser que sou uma coisa que pensa, concluo efetivamente que minha essência consiste somente em que sou uma
coisa que pensa ou uma substância da qual toda a essência ou natureza consiste em pensar. E , embora talvez (ou, antes, certamente, como direi
logo mais) eu tenha um corpo ao qual estou muito estritamente conjugado,
todavia, já que, de um lado, tenho uma idéia clara e distinta de mim mesmo, na
medida em que sou apenas uma coisa pensante e inextensa, e que, de outro, tenho
uma idéia distinta do corpo, na medida em que é apenas uma coisa extensa e que
não pensa, é certo que este eu,
isto é, minha alma, pela qual sou o que sou, é inteira e verdadeiramente
distinta do meu corpo e que ela pode ser ou existir sem ele”[60].
Tese, com certeza, geradora de polêmicas filosóficas que sobrevivem até aos
nossos dias, mas que é fundamental para que Descartes possa justificar a ordem Mecânica
da matéria, exigência da Nova Ciência e, ao mesmo tempo, submetê-la à uma ordem puramente racional.
A certeza
de que Deus existe e que ele não o engana, garante a Descartes uma fortíssima
inclinação para afirmar
a existência das coisas materiais. Mas posto que essa
afirmação não é derivada de uma idéia clara e distinta, só lhe é possível ter uma fortíssima inclinação de que elas, de fato, existem. Apesar da
probabilidade da existência das coisas materiais, a percepção que o espírito
tem das suas representações é “muito obscura e confusa”, já que elas não são
fundadas em idéias claras e distintas, mas, as idéias que o espírito concebe
clara e distintamente, principalmente aquelas originárias da geometria (que não
são derivadas da percepção), encontram, nessas representações sensíveis, sua
correspondência necessária e verdadeira. E quanto às outras coisas, que são
derivadas da percepção, (o sol, o som, a dor, a luz, etc...) mesmo não tendo
nenhuma idéia clara e distinta das suas representações, “é certo que, embora
sejam elas muito duvidosas e incertas, todavia, do simples fato de que Deus não
é enganador e que, por conseguinte, não permitiu que pudesse haver alguma
falsidade nas minhas opiniões, que não me tivesse dado também alguma
faculdade capaz de corrigi-la, creio poder concluir seguramente
que tenho em mim os meios de conhecê-las
com certeza”[61].
A preocupação de Descartes em estabelecer as condições que possam conduzir ao
conhecimento das representações sensíveis, pelas quais ele pode conhecer
“com certeza” a existência das coisas materiais, é tornar possível a própria física. Se, com a geometria, ele
obteve um conhecimento das essências das
coisas extensas, que não implica em existência real e necessária, com a física
se estabelece um conhecimento capaz de fundamentar e validar um saber
verdadeiro da própria extensão, ou seja, um conhecimento efetivo dos corpos
materiais. A extensão é a condição
necessária, para que Descartes possa afirmar a sua física. A física garante a
Descartes duas conquistas: a afirmação do racional sobre o real e, em seguida,
estabelece um nexo de ligação, uma união entre essas duas substâncias distintas
– é através das conquistas da física que Descartes fundamentará a sua Moral e,
através desta, justificará essa união substancial. Descartes estabeleceu a
absoluta distinção entre a substância pensante (res
cogitans) e a substância extensa
(res
extensa), pode, agora, garantido pelo conhecimento da extensão, obtido
pela física, estabelecer uma união entre
essas duas substâncias. E, desta forma, Descartes pode justificar a origem
dessas representações sensíveis que existem no espírito, mas que não dependem
do puro pensamento inteligível para existirem, pois essas são ensinadas ao
espírito pela própria natureza. Em favor desta tese, Descartes afirma que
a alma não está alojada ao seu corpo,
como um piloto em seu navio, mas que, além disso, lhe está conjugada muito
estritamente e de tal modo confundido e misturado, que compõe com ele um único
todo[62].
Estabelecida
a união das substâncias distintas – talvez um dos pontos mais problemáticos e
polêmicos da metafísica cartesiana -, a questão que se coloca agora é saber
como fundamentar, verdadeiramente, a relação entre o pensamento e a realidade
de fato. O que verdadeiramente é possível conhecer do mundo material, ou seja,
até que ponto o entendimento pode dar conta das substâncias extensas? A
resposta a essa questão envolve uma
complexa reflexão sobre o conceito de entendimento e o conceito de extensão. Só
a partir da compreensão da ordem desses dois conceitos é possível estabelecer a
verdadeira ordem do saber. “A extensão é
para a matéria o que o pensamento é para o espírito: o seu atributo principal.
A certeza da existência das coisas materiais acrescentando-se à da sua
essência, fundou como saber do mundo existente uma física geométrica na qual a
matemática realiza a sua vocação ao ser a armadura do real. A matéria, reduzida
à extensão, oferece-se com efeito a um saber geométrico. Descartes explica
todos os fenômenos materiais apenas
pelas considerações de
grandeza, de imagens e de
movimento, ‘maneira dos matemáticos’”[63]. A redução da matéria a um puro
conceito de extensão implica que, verdadeiramente não é possível conhecer as
coisas materiais em si mesmas, ou seja, das coisas percebidas não se pode ter
uma idéia objetiva, mas só conhecer a sua essência conceitual, fornecida a
partir do conceito de extensão como um ente puramente matemático. Como vimos,
no início do nosso texto, Descartes vai conciliar a matemática, através da
geometria, que é a ciência da matéria, com a física, que é a ciência do
movimento, constituindo assim uma física-matemática ou geométrica. E, através
desta, determinar a ordem de verdade do real. Assim, a física confirma que só
se pode conhecer verdadeiramente, das substâncias extensas (matéria),
aquilo que se constitui a partir da
substância inextensa (pensamento), apresentando-se em forma movimento, figura,
grandeza etc. Entretanto, lembremos que, apesar da garantia e correspondência que a física fornece entre
a leis do pensamento e as leis da matéria, da natureza, essa
correspondência, bem como a validade absoluta da sua verdade, só
é possível porque, acima de tudo, existe uma garantia que a antecede e a
possibilita: Deus. É Deus, segundo Descartes, na sua infinita
bondade e perfeição, autor universal de todas as coisas, das leis do
pensamento, das leis da matéria e autor do próprio sujeito pensante, que
garante as verdades claras e distintas, que garante, em última instância, toda
ordem do saber. Desta forma, garantido por esse Deus veraz, Descartes pode,
finalmente, depois de uma longa caminhada, alcançar aquilo que ele buscava no
início dessa Odisséia: justificar
e legitimar, a partir de uma
fundamentação metafísica, a Nova Ciência. Não seria
excesso repetir, ao final do nosso
texto, a bela metáfora de Descartes que
tão bem encarna o seu espírito e desejo de construir uma única ciência, fundada em um único princípio, que fosse capaz de dar
conta de todos os saberes: “A
filosofia toda é como uma árvore, cujas raízes são a metafísica, cujo o tronco
é a física e cujos os galhos que saem desse tronco são todas as outras
ciências...”
BIBLIOGRAFIA
Obras
de Descartes
Meditações. In Obra Escolhida
int. Gilles-Gaston Granger. Pref. e notas: Gérard Lebrun. Trad.. J. Guinsburg e
Bento Prado Júnior. 3. Rio de Janeiro. Ed. Bertrand Brasil. 1994.
Discurso do
Método. In Obra Escolhida int. Gilles-Gaston
Granger. Pref. e notas: Gérard Lebrun. Trad.. J. Guinsburg e Bento Prado
Júnior. 3. Rio de Janeiro. Ed. Bertrand Brasil. 1994.
Princípios da
Filosofia. Descartes. Apresentação, Trad. e Comentários
por Leonel Ribeiro dos Santos. Lisboa –
Portugal. Ed. Presença. 1995.
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vols. Paris. Librairie Philosophique J. Vrin. 1996.
Obras de Comentadores e outras obras
BEYSSAD, Michelle. Descartes. Trad. Fernando
Figueira; Lisboa. Ed. 70. 1972.
COPÉRNICO, Nicolau.
As
Revoluções dos Orbes Celestes. Int. Luíz Albuquerque. Trad. Dias Gomes.
Lisboa. Fundação Calouste Gulbenkian. 1984
COTTINGHAM, John. Dicionário – Descartes. Trad. Helena Martins. Rio de Janeiro. Zahar Editor. 1995
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Trad. Joana Angélica D’Avila Melo. Rio
de Janeiro. Ed.Record. 1996.
FERDINAND, Alquié. A Filosofia de Descartes.
Trad. M. Rodrigues Martins. Lisboa.
Ed. Presença. 1969.
GALILEU, O Ensaiador. Trad. e notas: Helda
Marroca. Col. Os Pensadores. São Paulo.
Nova Cultural. 1978.
KOYRÉ, Alexandre. Estudos Galilaicos. Lisboa.
Publicações Dom Quixote. 1968.
_________________. Considerações sobre Descartes, trad. Hélder
Godinho, Portugal:
ed. Presença, 1992.
LEOPOLDO, Franklin e Silva. Descartes, a metafísica da
modernidade. São Paulo. Ed. Moderna. 1996.
LENOBLE, Robert. História da Idéia de
Natureza. Trad. Tereza Laura Pérez. Ed. 70, Lisboa – Portugal. 1969.
SARTRE, Jean-Paul. La
Liberté cartésienne. in Situations. V. I. Paris. Ed. Gallimard. 1947.
VALERY, Paul. O Pensamento Vivo de Descartes, trad. Maria de Lourdes Teixeira. São Paulo. Martins. Ed. Da Universidade de São Paulo. 1975.
[3] Galileu,
O Ensaiador, p. 21.
[4]
Descartes. Discurso do Método, p. 45.
[5]
Descartes (correspondência),
transcrita por Paul Valéry, In O Pensamento vivo de Descartes, p.
127-128, As expressões em itálico são nossas.
[6] Descartes (correspondência), transcrita por Paul Valéry, In O Pensamento vivo de
Descartes, p. 127-128.
[8]
Descartes. Discurso do Método, p.74.
[9] Idem;
p.75
[10] Koyré,
A. Considerações sobre Descartes, p.46.
[11] Idem,
p.28.
[12]
Cf.Lenoble,R. História da Idéia de Natureza, p. 26.
[13] Koyré,
A; Estudos Galilaicos, p. 399/400
[14]
Descartes, Meditações, p.
131-132. In Obra Escolhida,
introdução Gilles-Gaston Granger, prefácio e notas de Gérard Lebrun, tradução de
J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. – 3º ed. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
1994, . (Todas as citações das Meditações,
bem como do Discurso do Método,
serão feitas segundo esta edição).
[15] Ibid. p. 132.
[16] Ibid, p. 132.
[17] Ibid, p. 132.
[18] Cf.
Koyré, Alexandre. Considerações sobre Descartes, p.46.
[19]
Descartes. Princípios da Filosofia, Trad. e Notas de Leonel
Ribeiro dos Santos. P. 150/51
[22] Idem;
Idem.
[23] Idem,
p. 65.
[24]
Descartes, Meditações (carta de
apresentação da obra), p.105. Os grifos são nossos.
[25]“As
Meditações não é só um livro que
pretende provar, pela ‘razão natural’, a existência de Deus e a imortalidade da
Alma. Em carta a Mersenne, de 11 de novembro de 1640, Descartes afirmava não
tratar – as Meditações –
absolutamente em particular de Deus e da alma, mas em geral de todas as
primeiras coisas que a pessoa pode conhecer ao filosofar.’ R. Geneviève; Descartes – uma biografia, p. 151.
[26]
Descartes, Carta Prefácio,
transcrita por Paul Valery, In O pensamento vivo de Descartes, p. 116-117.
[27]
Assim Descartes define os conceitos de Clareza e Distinção, conceitos
fundamentais para a sua metafísica: “Chamo clara aquela percepção que está
presente e patente a uma mente atenta; da mesma forma que dizemos ver
claramente as coisas que, estando na presença do olho que as vê, o movem com
força e claridade suficiente. Chamo, porém , distinta aquela percepção que, sendo clara, é de tal
modo separada de todas as outras e determinada, que absolutamente nada mais
contém em si senão aquilo que é claro”. Princípios da Filosofia, XLV, p.
78.
[28] A.
Koyré, Considerações sobre Descartes,
p. 36.
[29]
Franklin L. e Silva, Descartes, a
metafísica da modernidade, p. 36.
[30]
Descartes, Meditações, p. 125
[31]
Descartes, Meditações , p.126.
[33]
Descartes, Meditações, p. 128. As
expressões sublinhadas são nossas.
[34] Ibid.
p. 128
[35] Ibid.
p. 130. As expressões em itálico são nossas.
[37] Alquié,
F. A Filosofia de Descartes, p. 85.
[38] A
conquista da certeza da existência de Deus é fundamental para toda a ordem do
sistema cartesiano. É a partir dessa conquista da existência de um Deus
perfeito e garantido por essa conquista,
que Descartes passa do conhecimento subjetivo e isolado da existência do
Eu (obtido na Segunda Meditação),
para o conhecimento de todas as coisas, para o conhecimento do mundo externo.
[43] Ibid. p. 156.
[44] Ibid, p. 157
[45]
Descartes. Meditações, p. 160
[46] Ibid; p. 162.
[47] M. Beyssade, Op., Cit., p. 45-46.
[49]
Descartes. Discurso do Método, p. 41.
[56]
“A extensão em comprimento, largura e profundidade é, para Descartes, a
característica definidora da matéria ou ‘substâncias corpóreas’, e, em
princípio, todas as várias propriedades da matéria podem ser exibidas como
‘modos’ da extensão, isto é, como as
várias formas nas quais algo pode ser extenso. Assim, embora o famoso pedaço de
cera discutido na Segunda Meditação possa assumir uma quantidade indefinida de
formas, elas não passam de simples modos de extensão” J. Cottingham, Dicionário Descartes, p. 65.
[61]
Descartes, Meditações, p. 189.
[63]
Beyssade, M. Op. Cit., p. 54.
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