CAMINHO, CAMINHANDO-ME.
Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem achei. (F. Pessoa)
Por volta de 1982, esteve na Bahia,
Félix-Guattari, psicanalista e militante revolucionário francês que, junto com
Deleuze, escreveu o livro: O Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia.
Veio ao Brasil com a missão de compartilhar sua experiência como militante do
Partido Socialista Francês - partido que, mais tarde, chegaria ao poder na
França.
No
Brasil, a classe operária, especialmente aquela mais politizada, oriunda da
região do ABC/Paulista, alimentava a pretensão de fundar um partido político
que representasse, de fato, os interesses da classe trabalhadora. Nada mais
oportuno, portanto, de conhecer, na prática, como os trabalhadores de outros
países se organizavam politicamente.
Na verdade, o PT já tinha sido fundado, em
1980. Contudo, não passava de um partido incipiente, restrito à região de suas
bases sindicais. Sua ambição era transformar-se em um partido de alcance
nacional, que conquistasse à adesão de todos os trabalhadores do Brasil.
A
palestra de Guattari foi realizada na casa dos padres jesuítas, situada no
Bairro da Federação, em São Lazaro, onde, por muito tempo, funcionou a revista CEAS – Centro de
Estudos e Ação Social: um espaço aberto para que às vozes silenciadas pela
repressão daqueles tempos pudessem se pronunciar. Ali, a esquerda política da
Bahia se reunia, inventava suas utopias, escrevia seus textos e socializava as
suas ideias.
Ao final
da palestra, foi distribuída uma lista na qual os presentes deveriam assinar,
demonstrando sua concordância com a fundação de um partido político que
representasse e defendesse a visão de mundo dos oprimidos - uma visão de mundo
da classe trabalhadora.
Eu era
um jovem, estava cursando o primeiro ano do curso de filosofia. Flertava com o
movimento estudantil, mas não dispunha de tempo livre para uma dedicação
exclusiva. O trabalho, condição necessária para minha sobrevivência, impedia-me
de ir além do compartilhamento de ideias em busca de um mundo mais justo e
livre para todos.
Ao meu
modo, nos limites de minha condição existencial, eu também era um
revolucionário. Queria mudar o mundo. Participei de algumas passeatas, inalei
muito gás lacrimogênio, cercado pela polícia, invadi prédios em busca de
proteção, mas não passei disso, não fui para a clandestinidade, não me tornei
um guerrilheiro do Araguaia. Não...
Sempre
fui um revolucionário doméstico - sem armas, apenas um revolucionário no plano
das ideias – solidário com os bons e justos ideais políticos. Fiquei encantado com o que aquele intelectual
francês falava.
Quando
jovem, ele se mostrava solidário aos movimentos iniciados pelos estudantes, ao
lado de Sartre, Camus, Foucault, Simone de Beauvoir e tantos outros
intelectuais, sob a orientação do Partido Comunista Francês.
Reivindicavam
reformas na educação, na ordem social e no sistema político. A princípio, foi o
Quartier Latin; depois, as ruas de Paris foram tomadas por grandes e
históricas manifestações.
Na terra
onde a Bastilha caiu, “O livro vermelho”, de Mao Tse Tung, ganhava
popularidade. Até os dias de hoje, cinquenta anos depois, a França carrega na
alma os ecos daqueles clamores. O mundo, por sua vez, também foi tocado pelas
utopias dos jovens estudantes: “É proibido proibir”, “A imaginação no poder”,
“O Estado é cada um de nós”, “Abaixo a sociedade de consumo!”, “Corram
camaradas, o velho mundo está atrás de vocês”, “Abaixo do calçamento está a
praia”...
Essas ideias
já embalavam os meus delírios - ainda sem direção definida. Também eu queria um
mundo assim. Liberdade, acima de tudo: Liberdade. Reconhecia-me naquele projeto
político. Finalmente, os excluídos passavam a se ver representados. O poder
parecia, enfim, ao nosso alcance – e queríamos conquistá-lo. Era o amanhecer do
PT.
Ainda
sem uma grande convicção política, assinei aquela lista com a intenção de, mais
tarde, filiar-me oficialmente ao PT. Não demorou muito e, mesmo sem militância
ativa, tornei-me filiado do PT. De lá para cá, entre alegrias e tristezas,
votei sempre no PT. Tornei-me um petista, sem nunca ter frequentado a igreja do
partido. Um “militante”, não um devoto.
Longo
tempo se passou. Meu último voto no PT, para prefeito de Salvador, foi em
Nelson Peregrino, contra ACM Neto. O tempo passou, ACM Neto venceu as eleições.
Por outro lado, dessa vez com o meu voto, Rui Costa – indicado por Wagner, que
também já havia recebido meu voto – foi eleito governador da Bahia.
Veio a eleição para a Presidente da República.
No primeiro turno, votei em Ciro Gomes; no segundo, em Fernando Haddad,
candidato do PT. Bolsonaro venceu. A vitória desse senhor jamais teria a
contribuição do meu voto, ainda que os soldados do PT, com sua visão bipolar do
mundo, digam o contrário.
Voltemos
à Bahia. Na capital, o PT nunca conquistou a vitória; sempre se aliou a
coligações espúrias (uma prática bem conhecida da direita), mais interessada em
conquistar o poder do que em construir um projeto político sério que
beneficiasse verdadeiramente a cidade. Como exemplo, cito a coligação feita com
o pária João Henrique.
Em São Paulo, sob imposição de Lula, houve a
aliança entre Haddad e o representante de tudo que há – e já houve – de pior na
política brasileira: Maluf. Nunca fui eleitor da oligarquia de Antônio Carlos
Magalhães ACM (seja o patriarca ou o seu neto). Suas ideias sempre estiveram –
e ainda estão – distantes da minha forma de pensar e ver o mundo. No entanto,
não posso negar, que, à margem da política, flertei, e continuo flertando –
sim, flerte, nada de fidelidade ou devoção cega – muito mais com as causas
defendidas pela esquerda do que aquelas que identificam o cenário ideológico da
direita.
Sem o
meu voto, ACM Neto se tornou Prefeito de Salvador. Dois governos, o de ACM Neto
e o de Rui Costa, um de “direita”, o outro de “esquerda” (será?) – se
empenharam em disputar para ver quem realizaria a maior quantidade de obras na
cidade. Empataram. A população, com índices de mais de 70% de aprovação,
reconhece a boa administração de ambos. Andando pelas ruas da cidade, não posso
deixar de admitir que estou satisfeito por ter perdido o meu voto. Há derrotas
que se transformam em vitórias.
O
embate político entre a “direita” e a “esquerda” na Bahia se traduz em
boas obras para a cidade. A Bahia agradece. Viva a diversidade política.
Com o
tempo, aprendi a suspeitar dos profetas, daqueles que autointitulam “salvadores
da cidade”, sejam da “direita” ou da “esquerda”. São homens perigosos. Depois
de eleitos, tratam o Estado como um bem particular, dividindo-o entre aliados,
amigos e, não raramente, familiares. O Estado deixa de ser um bem público e se
transforma em uma propriedade privada. O Estado sou eu – e, claro, meus
aliados. Viva o “Rei Sol”.
Para se
manterem no poder, em nome de uma tal “governabilidade”, esses governantes renunciam
aos valores que os fizeram conquistar o voto e a confiança do povo. Por trinta
moedas, vendem a sua alma ao Diabo. Não importa o que façam, sempre estão
certos. E quando erram, encontram maneiras de justificar. Seus discípulos fazem
uso da nefasta técnica da inversão de valores. O “bem!” se torna “mal”, o
“justo” se torna “injusto”, e tudo dança na tábua de valores, não para atender
ao público, mas aos interesses particulares.
Apesar
de ser um grande erro, essa prática é comum em qualquer ação movida pelas
paixões, longe das rédeas da razão. Sempre há uma “boa ação” que serve para
cobrir todos os pecados cometidos: “Rouba, mas faz”. Todos, independentemente
da sua bandeira partidária, recorrem a essa “ética” seletiva para justificar e
defender suas transgressões morais.
Assim, o
pecado nunca está onde eu me encontro – jamais na minha igreja – mas, ao
contrário, é uma abominação , atribuída àqueles
que habitam do outro lado da margem, onde se ergue a igreja da perdição,
morada de Mefistófeles. “Falou
muito bem e agudamente quem disse
que ‘cada qual aprecia o odor de
seu esterco” (Montaigne – Ensaios). "Heródoto atribui judiciosamente, esse acesso da
paixão - achar que a bandeira do meu partido ou da minha igreja é o estandarte
da verdade -, a uma verdadeira loucura ou a uma desordem cerebral. [...] a este
respeito, cada nação encontra mais satisfação em seu próprio culto e pensa que
leva vantagem sobre todos os demais (Hume - História Natural da Religião).
Caminhando
em procissão, cada um em sua margem, carregando o seu andor e, sobre ele, o seu
mito, seu salvador, tenta conquistar as ovelhas que pastam na margem oposta,
prometendo-lhes terras onde a grama é mais verde, onde a água nunca falta, onde
o governo é probo e todos podem alcançar a justa e merecida felicidade ... Rumo
à terra prometida, a manada de obreiros, guiada pela “bandeira do divino”, segue
sua jornada, “se arrastando feito cobra pelo chão”.
Instalados em suas superstições, tornam-se prisioneiros delas. Fazem de
suas verdades suas prisões. Já não arriscam, não colocam mais suas certezas sob
suspeitas. Ao contrário, tornam-se soldados de um fanatismo cego, erguendo
armas contra todos que ousam se aproximar de suas verdades, ousa colocá-las em
risco.
Sem sair do lugar, erguem sua
morada, cultuam sua verdade e tornam-se seus devotos.
Fechados ao guia seguro da razão - lugar do esclarecimento - abrem-se
para o obscurantismo. Saltitando entre superstições, vão inventando mundos
fantasmagóricos para habitar. “Tanto
mais os homens se deixam facilmente prender por todo gênero de superstição,
tanto mais é difícil que ele persistam numa só” (Spinoza – Tratado
Teológico-Político). “Desse modo, forjam inúmeras ficções e, quando
interpretam a Natureza, nela descobrem milagres, como se ela delirasse com
eles” (Idem). “[...] todos os preconceitos
[...] dependem de um único, a saber, que os homens pressupõem, em geral, que
todas as coisas naturais agem, tal como eles próprios, em função de um fim,
chegando até mesmo a dar como assentado que o próprio Deus dirige todas as
coisas tendo em vista algum fim preciso, pois dizem que Deus fez todas as
coisas em função do homem, e fez o homem, por sua vez, para que este lhe
prestasse culto”. (Spinoza – Ética). "Um dos
argumentos contra a democracia é que uma nação de fanáticos unidos tem mais
oportunidade de sucesso na guerra que uma nação constituída de grande proporção
de homens sãos”. (Russell – O poder).
Quando
as conveniências partidárias passam a justificar a relativização dos valores, é
porque “há algo de podre no reino da Dinamarca”.
Perguntaram
a Platão, qual seria o critério para se identificar o Bem mais perfeito – o Bem
ideal. Ele não teve dúvida: identificamos o Bem mais perfeito por sua extensão.
Quanto maior a sua abrangência, mais próximo do ideal ele se encontra. O bem
que visa a cidade, é mais extenso que o bem que visa o cidadão. O bem universal
é mais perfeito do que o bem particular...
O
fenômeno em si não é “bom” nem “mau”; o seu valor será determinado conforme nos
afeta. Se somos afetados positivamente, os afetos são amados, desejados e
tornam-se causa das nossas alegrias, aumentando nossa potência de agir – por
isso buscamos preservá-los. Os afetos negativos, ao contrário, diminuem a nossa
potência de agir, tornam-se causas de tristeza e, por isso, os evitamos. O ideal
seria sermos afetados pelos afetos que nos trazem alegrias e ampliam nosso ser.
Com bem diz o poeta Vinicius de Moraes: “É melhor ser alegre do que ser triste
/ Alegria é a melhor coisa que existe”.
Mas, infelizmente,
nem sempre é isso que ocorre. Quase sempre caminhamos em direção contrária.
O
problema surge quando a regência dos nossos afetos fica sob o comando das
nossas paixões, fora do alcance do reto uso da razão. Nesse momento,
embaralhamos as cartas dos afetos, perdemos o controle sobre eles e,
desordenadamente, somos conduzidos ao campo da des-razão, onde reina nossas
crenças, esperanças e superstições – um território fértil para que o fanatismo,
cego e perigoso, se torne a força orientadora de toda a ação humana.
Renunciando
à sua autonomia e ao direito conquistado no processo civilizatório, o homem
aliena a sua alma, tornando-se servil a um salvador qualquer. “O fanatismo é a
única forma de força de vontade acessível aos fracos (Nietzsche). Sem culpa,
porque consciência não temos; sem controle dos próprios passos, já não sabemos
caminhar. Como trôpegos, esperamos que alguém nos carregue, nos salve, nos
conduza à terra prometida.
“Ainda
que importe a todos os homens conhecer a verdade, todavia pouquíssimos a
conhecem, porque a maioria deles se crê incapaz de procurá-la por si mesmos, ou
não quer se dar ao trabalho de fazê-lo. Assim, não admira que o mundo esteja
repleto de opiniões vãs e ridículas, nada sendo mais capaz de lhes dar curso do
que a ignorância. De fato, é ela a única fonte de falsas ideias que se tem da
divindade, da alma, dos espíritos e de quase todos os erros que dela derivam. É
um uso que prevaleceu contentar-se com os prejulgamentos que se carregam desde
o nascimento, e consultar pessoas pagas para sustentar as opiniões recebidas e,
por conseguinte, interessadas a convencer o povo a respeito delas, sejam
verdadeiras ou falsas [...] Se o povo pudesse compreender em qual abismo a
ignorância o arremessa, sacudiria logo o jugo dessas almas venais, que, para
seu interesse particular, o mantêm nessa ignorância”. “[...] O que há de certo
é que a reta razão é a única luz que o homem deve seguir, e que o povo não é
tão incapaz de usá-la quanto se busca fazê-lo acreditar” (Spinoza - Tratado
dos três impostores).
Conhecer
os afetos, tê-los sob posse e domínio – em vez de ser dominados por eles – é
indício de que estamos diante de uma alma que aprendeu a cuidar de si. Uma alma
que não se deixou escravizar, não se bestializou, não se pôs a serviço de um
senhor qualquer – seja de “direita” ou de “esquerda”, deste ou de outro mundo.
Uma alma que, livremente, escolheu escolher-se.
Escolhendo-me,
tenho caminhado - sem a certeza do caminho. Tenho convivido com pessoas cheias
de certezas. São seres superiores, tão seguros de suas verdades que chegam a me
assustar. Devotos, sustentados pela força e pelo poder da fé, seguem o som do
berrante tocado por seu Messias, seu Salvador... Evito sentar-me à mesa dessa
gente, evito partilhar seu vinho. “Como posso eu falar com os meus superiores
sem titubear?” Eu, que não tenho nenhuma certeza, só dúvidas e suspeitas?
Sou um
caminhante solitário, que escolheu viver sem Messias, sem deuses. Deixe-me seguir
- minhas caminhadas incertas. Caminho, caminhando-me.