“Quem comete uma injustiça é
sempre mais infeliz que o injustiçado” (Platão)
Um amigo - vou identificá-lo como
Diógenes -, com formação em filosofia, narrou-me algo ocorrido com ele que o
teria deixado muito triste. Sempre gostei de ouvir suas histórias. Ele é o que
poderíamos chamar de um bom contador de casos. É verdade que, às vezes, mente
um pouco, mas, acho eu, esse é só um recurso literário do qual ele faz uso
visando tornar as suas narrativas mais interessantes, talvez até um pouco mais
teatrais.
Diógenes participava de uma
entidade dedicada à confecção de documentos, resoluções, coisas do gênero. Certo
dia, em uma reunião formal da entidade, foi apresentado um documento que,
depois de lido, seria submetido à votação da plenária. Lido o documento, foi
aprovado por unanimidade. Ele, apesar de ter votado favorável à aprovação do
documento, indicou algumas críticas à forma como o tal documento fora
elaborado. Diante de sua crítica, achou-se por bem que o documento voltasse em
uma próxima sessão para ser reavaliado. A situação criou um certo desconforto,
principalmente entre aqueles que desejavam sua aprovação imediata.
Na reunião seguinte, o documento
voltou à pauta. Durante a sessão, o jovem relator o reapresentou, precedendo a
leitura com algumas observações. Uma delas deixou meu amigo muito triste. Disse
o relator: - Hoje, antes de vir a esta sessão, recebi a seguinte recomendação: “Não
leve em conta as provocações de Diógenes!”
Meu amigo sentiu o impacto da
declaração. Embora perplexo, esforçou-se para não demonstrar o seu desconforto
aos presentes. Teve vontade de descobrir quem havia aconselhado o relator a
lançar contra ele uma flecha tão venenosa, mas, para evitar mal-estar na
reunião, optou pelo silêncio. Para ele, as palavras soaram como se estivessem
dizendo: “não ligue para o que ele diz, ignore-o. Apesar de suas discordâncias,
ninguém o levará a sério. No final, todas as mãos estarão levantadas a nosso
favor.”
Naquele momento, lembrei-me de
Diógenes - não o meu amigo, mas Diógenes, o grego, discípulo da escola Cínica,
que renunciou às coisas do mundo e escolheu a pobreza, fazendo sua morada em um
tonel. Conta a lenda que, certa vez, enquanto
filosofava em público, ninguém prestava atenção em suas palavras. Triste,
começou a assobiar. Para sua surpresa, a multidão aproximou-se, curiosa. Ele então
censurou a todos: “Vocês vêm ouvir uma tolice, mas ignoram as coisas sérias”.
Vontade não faltou ao meu amigo de reagir à injustiça que
estava sofrendo. Ele não tinha a intenção de ofender ninguém, tampouco
desqualificar o trabalho do jovem relator; seu único objetivo era garantir que
uma determinada camada da sociedade tivesse voz e vez na elaboração daquela
resolução que dizia representá-la. Era um idealista. Acreditava que o povo
deveria ser ouvido.
Diante do ocorrido, perguntou-se: qual deveria ser seu
comportamento ao sofrer uma injustiça? Sempre se fazia essa pergunta: é melhor
cometer ou sofrer a injustiça?
Tinha o hábito de recorrer a Platão sempre que enfrentava
dificuldades, buscando orientação sobre o melhor caminho a seguir. Dessa vez,
não foi diferente. Não demorou muito para que o filósofo viesse ao seu socorro:
“É, portanto, justo devolver o mal com o mal, como acredita a maioria, ou
injusto? (...) Jamais é correto cometer injustiça ou revidar a injustiça com
outra injustiça, ou, quando formos vítimas do mal, nos defendermos revidando
com o mal” (Platão, Críton).
Diógenes - agora sim, o meu amigo -
percebeu, naquele instante, que aquele não era mais o seu lugar. Não o ouviam.
Estava sendo apenas tolerado, mas não aceito. Era hora de partir, de levar sua
filosofia para outros ares. Ele sabia que, pelas costas, era alvo de chacotas.
Resignado, deu de ombros. Afinal, não
seria o primeiro, tampouco o último a sofrer zombarias. Sempre foi assim. Diz
Sócrates: “Aquele que se põe a filosofar torna-se motivo de escárnio.” Como
exemplo, cita o ocorrido com Tales que caiu em um poço enquanto observava os
astros. Uma camponesa zombou dele dizendo-lhe: “Você tenta conhecer o céu, mas
não enxerga o que está aos seus pés.”
Marx, que nem sempre teve os
filósofos em boa conta, não perde a oportunidade de fazer chacota com os
fabricadores de conceitos. Em uma carta, dirigida a Laura, sua filha, ele zomba
dos filósofos, indicando a inabilidade desses contempladores de estrelas para
com o mundo prático da vida: “[...] um barqueiro recebe um filósofo que deseja
fazer a travessia entre as margens do rio”. Começa o diálogo entre eles:
“Filósofo: barqueiro, você sabe História? Barqueiro: não! Filósofo: então
perdeu a metade de sua vida. Continua o
Filósofo: estudou matemática? Barqueiro: não. Então perdeu mais da metade de
sua vida. Essas palavras apenas haviam acabado de sair da boca do filósofo e o
vento virou o barco e ambos, barqueiro e filósofo, viram-se lançados à água.
Então, o barqueiro perguntou ao filósofo: você sabe nadar? O filósofo responde:
não. O barqueiro conclui: então você perdeu a vida inteira”. E por aí vai,
sempre alguém a zombar dos filósofos...
Assim, ouvindo o meu amigo,
compartilhei de sua tristeza. Não gostaria de estar em seu lugar. A história, contada
em um bar após a terceira saideira, não me abandonou, sempre voltava a
incomodar-me. Uma tarde, enquanto tomava um whisky, o assunto voltou a me
visitar. Sem nada para fazer naquele momento, deixei-me levar pelo desconforto
do acontecido. Que tempos vivemos, em que não há mais espaço para filósofos? Pensar
tornou-se um ato subversivo, desprezado pelos “homens de bem”. Ignora-se, sem
pudor, o conselho de Descartes: “Os brutos animais que apenas possuem o corpo
para conservar ocupam-se continuamente na procura de alimentos; mas os homens, cuja
a parte principal é o espírito, deveriam empregar os seus principais cuidados
na procura da sabedoria, que é o seu verdadeiro alimento” (Carta prefácio).
Lembrei-me do acontecido com Sócrates. Certa vez, ele
encontrava-se no mercado, na cidade de Atenas, acompanhado de alguns discípulos
e dedicava-se com muito prazer à arte da filosofia. Falava da importância da
democracia e afirmava que ser um bom cidadão significava fazer um bom uso da
razão em benefício da cidade. Argumentava que, entre todos os pecados, a
ignorância era o pior deles. Orientava os governantes a ouvirem o povo antes de
elaborar as leis da cidade. Ensinava aos homens a conhecerem a si mesmos e a
tornarem-se seus próprios cuidadores, entre outros temas. Era um moralista,
preocupado com o bem da cidade e, consequentemente, com a felicidade do
cidadão. Pautou sua vida pela devoção às leis da cidade. Diante da
possibilidade de transgredir as normas de Atenas para salvar-se, escolheu tomar
o cálice da morte.
Enquanto falava, seus discípulos, sempre por perto,
observavam atentamente à medida que outras pessoas se aproximavam. Entre elas,
até mesmo figuras da vida pública, curiosas para saber o que aquele
"feio" filósofo tagarelava. Não demorou para que as palavras de
Sócrates começassem a causar desconforto entre os presentes. Em dado momento,
ouviu-se de um deles:
— “Não ouçam esse homem; nós sabemos o que é melhor
para a cidade, e não ele.” De outro canto, alguém exclamou:
— “Você não viu por onde ele anda? É motivo de chacota!” Outro ainda completou:
— “Deveria procurar um emprego, em vez de perambular pelas ruas lançando
injúrias contra a cidade e os deuses que adoramos.”— “Ele é perigoso, vive
corrompendo nossos jovens…”
Logo, as agressões, que inicialmente se deram em
palavras, passaram a ser físicas. Um indivíduo, mais exaltado, aproximou-se e
deu um tapa na cabeça de Sócrates. Em seguida, outro o empurrou, quase levando
ao chãor, e um terceiro, desprovido de pudor, deu-lhe um chute no traseiro. Ao
verem a violência aumentar, seus discípulos correram em seu socorro,
retirando-o daquele perigoso local.
Já seguro, Sócrates ouviu as recomendações de seus
discípulos, revoltados com as agressões sofridas por seu mestre
— “Sócrates, não é justo que você sofra essas
agressões. Você não as merece. Deve levar esses agressores ao tribunal; eles
precisam ser punidos pelo crime que cometeram contra você.” Em silêncio,
Sócrates ouviu seus discípulos e, depois de refletir, respondeu:
— “Caros amigos, digam-me: se eu recebesse coices de
um asno, levaria esse animal ao tribunal?”
Discipulos:
— “Não, claro que não.”
Sócrates prosseguiu:
— “Então, estamos tratando do mesmo caso. Há, por acaso, alguma diferença entre
o asno e o conselheiro que acabou de chutar o meu traseiro?”
Ao
recordar o ocorrido com Sócrates, minha tristeza pelas dores do amigo Diógenes
cedeu lugar à compaixão pelo conselheiro do relator, que o orientara a não
levar em conta o que dizia o filósofo.